segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Isto não é uma palavra.



Isto não é uma palavra.
E também não é a Palavra.
No princípio o Poeta estava de mãos vazias.
Havia muita gente e vozes e cidades e oceanos ao seu redor.
Um dia falou. E ao dizer o mundo nasceu como único deus do poema.
Disse-se como homem e construtor de pontes.
No dia em que encontrar a sua Voz, começará a ser o que sempre foi.
O Poeta será o Poema.

Feliz Natal para todos os que se deixam tentar pelas muitas vozes do mundo, que nada mais são que ecos de uma única Voz, o Ser, que espera no escuro, num silêncio de veludo.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Receituário


se eu falar muito devagar
talvez consiga suster o mundo nos meus lábios
certo é que deixarei certas palavras por dizer
uma manhã nebulosa de domingo em cada dedo
e o poema partirá das minhas mãos incompleto
um fio de intensa existência a escorrer desde os pulsos até ao chão

amo-te
não sei se te encontro hoje
amo-te
onde estão os espelhos onde ontem cortavas a luz?
amo-te
acolhe nos teus braços o meu dia
amo-te
não me escondas as paredes o ar a cidade
amo-te
é isto a despedida o desengano o engate?
amo-te
num segundo tudo ficará suspenso

seguro no meio das nossas miragens um pedaço de prata
não tenhas medo
não te farei mal
observa o reflexo da tua face nesta lâmina
brilhante
a inteireza da tua luz e da tua podridão encantam-me
gostaria de te prender nos meus braços
deixas-me?

quero-te
há demasiada gente que morre sem memória
quero-te
não temas o desvario o azar a obsessão
quero-te
trouxe-te algo para curar as tuas noites
quero-te
não quero que assines no fim
quero-te
não quero
quero-te
porque tinhas que engolir a estrada com todas as suas colisões?

hoje vários corpos foram encontrados
desconhecem-se as vítimas o seu passado o seu nome
porém várias veias pareciam ir na mesma direcção do desejo

olhares rubros má sorte
um anjo com rosto de cinzas

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

À parte


como explicar a uma criança a idade de uma árvore
ou outro mistério mais antigo que os mesmos anéis do seu cabelo?
o amor ou uma mancha na madeira
será uma nódoa ou um sinal do tempo?
quanto a mim
perdi a conta aos meus dias
sentei-me a contemplar as linhas das minhas mãos
e ao escutar outra criança ao lado
espelho contraponto miradouro as mesmas perguntas
o eco de um colo que se pede
de súbito acendeu-se uma nova demência
e sustive-me entre a explosão do riso e a mesa
tão abismal como o caos que adoro nos altares a cada dia

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Digressão de um ilusionista


o poema saído das mãos do criador

e quem sabe o que dirá o amanhã
porque o dia é claro e a noite
sabe-se lá o que nos traz nas nossas costas
e se eu pudesse eu aniquilaria todos os poemas
porque só o meu é real
apenas porque eu o digo
e só não digo o que não sei porque no fundo não existo
e ainda nem aprendi a ser
quem sabe nem eu conheço o que sai das minhas mãos
a minha obra é órfã antes mesmo de nascer
fatalmente
o poema ficará sem autor nem mestre nem ouvinte no final dos tempos
para quê se nunca mais haverá poentes
no lugar onde eu pousarei a cabeça
apenas a folha e o texto e o café e as pessoas e as ruas e
todas as cidades onde nunca vivi mas onde sempre deixei um rasto
como em qualquer cama sem redenção
para quê ter amigos ou família
se as sombras caminham sempre sós
e todas apanham o mesmo barco para casa no final do dia
cansadas do trabalho
não me negues nem apontes as pessoas ou as pedras da calçada
nada me converte nada me ensina nada me comove
a não ser quando me tocas
e aí as minhas teorias acabam sempre por ser desmentidas
afinal é essa a tua missão
que faria eu sem ti
sem a tua rapidez dos pianos
há tantas cordas com que amarramos a nossa pele
não me prendas às palavras pré-construídas
não quero
nem posso
dar-me ao luxo de continuar a falar-te
não posso
não tenho tempo
e o relógio que me ofereceste no ano passado continua a parar
por breves instantes
na mesma hora estúpida do dia
seis e vinte e cinco
não sei
não sei deve haver alguma razão para estar aqui
possivelmente receio
morrer do mesmo modo que as palavras me saem sempre
de modo repetitivo
dia sim dia não
o mundo pára nos meus dedos
nomeadamente entre o primeiro advérbio e os planos para o fim de ano
havia de ser bonito conhecer-te
talvez um dia quando eu for aquele célebre poeta
que toda a gente conhece do desfecho de um livro
tal como um amigo que se encontra num bar
à média luz todas as faces são ilusórias
o teu corpo e o meu destino
tudo o que toco com o poema desfaz-se
pois assim me descubro homem e a incerteza e o caminho e a paragem
tento parar há um autocarro que parte daqui a nada
e nem tenho um poema completo para seguir viagem
porquê
pergunto eu porquê
creio que terei a resposta quando deixar o assunto para outro dia
e inevitavelmente vir a encontrar um anúncio nas páginas centrais do jornal
que não anuncia calor mas apenas a vontade de estar sempre imerso no vazio
porquê
o verso sai-me sempre igual ao dia de ontem
e ao dia antes desse
talvez se não tivesse travões
talvez se andasse sempre em sobressalto
como hoje
talvez se deixasse de falar entendesse alguma coisa
sobre uma única pessoa
bastava calar-me
não sei para que é que me olhas dessa forma
afinal para que é que passamos a vida a dizer que tudo muda
quando me estás a dizer exactamente o mesmo apenas de outra forma
daí a minha falta de sono e a deriva dos continentes
o que é o mesmo que dizer os meus sonhos ou
aquelas pérolas perdidas de que as crianças se esquecem
quando aprendem a contar ou a ler ou a discutir política
talvez o poema se revele de outro modo quando eu crescer
ou quando envelhecer definitivamente até ao próximo parto
o facto é o que o poema saiu das mãos do criador e até hoje
nunca mais retornou
tudo isto me irrita e confunde
mas que fazer se a vontade das palavras não é a mesma que a nossa e
por mais que queira parar há algo que me prende ao poema
por mais que peça o divórcio nunca deixarei
nunca te deixarei
é possível que volvidos uns séculos eu volte aqui e diga
que me encontrei
mas até lá o poema continua em viagem
está atrasado
e ainda não voltou a casa

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

A voz


como poeta posso ter muitas vozes
posso descer à rua
ver uma flor
e imediatamente alimentar-me de luz
as folhas do poema provavelmente ficariam verdes
envelheceriam com a minha perda de inocência
e eu talvez pudesse guardar um verso para o inverno seguinte

posso ainda
nos arrufos entre certos amantes
não saber o que dizer
e ser a mão que bate do lado errado do coração
ou sempre que alguém cai de joelhos
ter os vitrais das capelas a cortarem a minha garganta
conhecer a luta do coração que duvida entre as mãos postas

como um deus
vivo da tua voz
do vazio e da tua fé
eu que crio alguém para poder ser quem sou
para além do meu pensamento

mas que digo eu
se o ruído é tudo o que há?

mesmo que um bilhete do metro me traga a casa
mesmo que apague as luzes
e ressurja no poema como em cada espelho
a voz que ouço na rua
não é a minha
mas a do poeta de um outro dia qualquer

hoje rasguei o poema
a carta branca a folha-atestado
as palavras a mais
os pedaços da folha que nunca foi poema
passaram pelo mar e trouxeram consigo o poente
não gosto do modo como as palavras caminham na areia
lembram-me um deus que preferia não ter ao meu lado
não quero fazer do poema uma cópia de outras tardes
porém há uma estranha ausência
um toque frio quando me falta o ar

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Retórica


um ponto final
era insuficiente para marcares as horas
quando te vi a dobrar a esquina
soube imediatamente que tinhas pressa
que dizer do teu silêncio?
sempre foste um poeta pós-modernista
mesmo enquanto me amavas
reduzias o vapor à sua essência mais concreta
sempre mediste o mundo com a palma da tua mão
talvez por isso não me pudeste conter
que me importam os rótulos?
eu próprio tinha mais asas que os dedos na tua mão

e se eu partisse a mesa onde apoias o teu mundo?
nasceria um deus emprestado
dissolvente
ou apressar-te-ias a colar tudo como estava?

adoro dançar à chuva
mostrar-te que conheço os segredos da luz
da decomposição das cores
vestir-me de sombras
mentir a mim mesmo
sentir a mesmíssima mão dos poemas concretos
a colidir com a minha face
pelo movimento do relógio concluo
que significo uma nova revolução estética
se me olhas desfazes o meu nome
se me dizes entro em silêncio
o meu rosto não podia sobreviver à tua mão sobre a mesa

sábado, 22 de setembro de 2007

Possessão


nada trouxe ao poema quando o fui buscar à estação
só sei que quando o entrevi zangou-se
sentaram-nos a um canto com um tabuleiro de xadrez
entre nós e as decisões
e assim ficámos durante eras
a debater impaciências

alguns séculos depois
estávamos eu e o poema
sendo eu outro poeta que não o de ontem
de repente surgiu a fome
e o poema disse-me que deus estava na mesa
note-se que ele não estava
à mesa
disseram-me apenas que tinha sido apanhado
fresco de manhã e por isso
por alguma razão
o tempo estava a passar mais depressa
e eu preocupado por poder perder o noticiário
não só comunguei como me esqueci de tudo
porém vim a saber que deixara de haver jornalistas
deus esquecera-se de lhes anunciar o fim do mundo
em primeira mão
decidiram então mudar-se para um segundo ramo
e pregar para outra freguesia
e sem televisão nem rádio decidi eu mesmo ir ao engate

eu nunca vou ao engate quando passa a novela
fingir
sai mais barato e é mais doce
reduz a acidez estomacal

o poema consentiu
na nossa ligação muito aberta
porém ao ir em busca de um copo descobri
que o poema era dono de todos os bares e tabernas
pareceu-me que até na discoteca vi um segurança com cara de poema
conhecia o segredo de contar todas as palavras com o punho cerrado
e portanto além de ser suspeito de traição
ainda me arrisquei a cair de quatro
quatro horas dizia o relógio
e ainda não havia deus nenhum disponível
seria da minha falta de troco
ou da minha queda para os esgotos?

nada trouxe ao poema
no final da noite simplesmente reencontrámo-nos
tomámos um último chá porque o sono era um luxo
e adormecemos
creio que lhe fez falta ter um jornal para afogar as mágoas
digo
para enrolar a língua
que vai sempre para o lixo de manhã cedo a cada dia
como os deuses que são pescados

esqueci-me de lhe perguntar
se ele ia ver passar o rio à tarde
talvez falemos sobre o assunto durante o almoço
encomendámos de véspera vários demónios de lenta digestão
e se efectivamente o poema sair pela porta
em direcção ao caudal que encheu dentro do prazo
levarei um ferro para engomar o lençol freático
e outro para despedaçar o crânio de quem parar ao redor

não me neguem
não existem espectadores puramente passivos

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Mutilação


aproveita a pausa
mantém o passo
goza cada milímetro da dor
o deserto está ali mesmo
a apenas um palmo de sangue
as luzes tremem
sente-as nas tuas veias
procura um outro nervo
sobrevivente resistente no meio do embate
e ao reclinares-te
lembra-te de quantos mundos foram já plantados no teu corpo

porque a guerra é uma sala de pânico
há correias que te prendem
deixa passar as palavras
elas penetram-te por debaixo da pele
há algo que te fere por dentro
talvez uma agulha
ou o silêncio

alimenta-te de mais um pouco de cegueira
afinal a batalha passa sobretudo pela medula

grita
a voz está vazia
mas nunca te esqueças de ir morrendo pelo diafragma
precisarás da garganta quando te venderes
retira um pouco de prazer do colapso
nada possuis além do que já perdeste
e afinal o olhar é um carrossel que gira para trás da mente

o estrabismo
repito
não passa de uma ilusão das falhas eléctricas
louco serias se me visses
que fazes ainda a escutar os presságios de rua?

apressa-te
ainda deixaste aquele canto por cortar

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Intuição



falaste-me de inocência
àquelas horas era-me difícil compreender
as tuas palavras
as tuas
múltiplas formas de pegar na minha mão
de acariciar os meus dedos
de fazer quiromancia
e jogar com o silêncio para calar o futuro
disseste-me também que um dia
o passado se apagará
talvez o teu toque me demonstre essa arte
essa tentação no deserto
essa arquitectura paisagística
que empregas para me apresentar ruas amplas
daquelas que ninguém polui ao final da tarde
onde há crianças que nos levam pela mão
e onde
bom
onde ao que parece tu acabas de fechar as cortinas

recomeçar
sabes bem que não conheço muita gente
posso andar pela cidade
ouvir as pessoas inalar o fumo entrar no metro
mas pergunto
o que se esconde atrás dos rostos
apressados zangados que pensam no jantar
ou a quem vão confiar o corpo ao anoitecer?
diz-me
quem és tu e todos aqueles que me encontram
na esquina onde desenho pontos de fuga no meu casaco?
sabes bem
sou um animal que se perde caminhando à chuva
há vozes que me são estranhas
mesmo que eu as conheça desde a mesa de cabeceira
ou de um recanto qualquer da minha boca

que queres de mim
se o lugar onde me serves as tuas mãos
não tem nenhum luar que o sustenha?
que queres de mim?
sou alguém que sobretudo sente
sento-me no chão de terra sob o sol
ou tento acercar-me de ti
e tudo o que te consigo oferecer
são pedaços de pele que guardei com os anos
embrulhei com eles muitas lágrimas
com eles esperei que um sorriso nascesse ao virar da hora
estas árvores
quem me dera que nos deixassem sempre ver a noite
parecem-me ter sido feitas unicamente para que tivessem ramos
e na sua nudez de inverno fossem molduras do tempo
mas para isso temos janelas
não é?

não
não largues a minha mão
afinal não consigo ainda adormecer
pelo menos não sozinho
existe uma longa estrada para percorrer
entende por favor
é de noite e tenho medo
não consigo tecer outras palavras quando me falta fé
dantes tinha um deus que me abraçava
e hoje?
hoje existe uma longa estrada para percorrer
não me digas que me repito
não me digas
sofá
cama
casa

lar
encanto-me sempre quando fazes isso
esse sorriso
creio eu que sorris
à média-luz todas as expressões são belas
encanto-me
céus
existe outra forma de pedir colo
é tão raro que alguma coisa ainda exista
e quando balbucio certas palavras
quero-te
amo-te
preciso do teu calor
espero apenas que as ouças no teu sono
é quase certo que um dia adormeças
insistes em negar-me essa tua necessidade
mas eu
eu não consigo adormecer
não te esqueças que sou um animal que apenas dorme à chuva

se numa hora alta dos meus devaneios
me visitares
ou voltares a pegar na minha mão
aceita o meu convite
e vem comigo viver a explosão com que digo à cidade
que tenho fome
cidade
sinto raiva
tenho saudades
fazes-me falta
preciso deste modo de me desmembrar
só assim consigo sentir que certas gotas de pedra me invadem
nunca pensarias nisso se me pintasses uma aguarela
vem comigo
conversar com aquele que vem com o vento
chamemos-lhe sonho
as nuvens são fortes alucinogénios
quando nos abeiramos das varandas
vem comigo
preciso deste pedaço de sossego
a tua presença

que é como quem diz
o mundo
ou um pouco de carinho

domingo, 26 de agosto de 2007

Trapézios


conhecer o ritmo da tua pele
as sombras
os ângulos perfeitos da tua face
e as promessas que fazes aos meus lábios
concretamente
render-me ao odor que exalas
pedaço de segredos e de luta
arrancar com as mãos a tua voz mais profunda
e sentir o pulsar da tua dor
como quem experimenta o desejo
na expectativa dos meus dedos

a minha mente buscava a simetria
o modo mais geométrico de pedir amor
e se posso atravessar de um lado ao outro
o teu olhar
colho a limpidez
a abertura de cada poro
a ousadia do teu corpo
as manhãs claras em que te tornas evidente
as veias ameaçadoras
as linhas fluidas
desde o lugar onde ontem não te degolei
até ao amplexo em que ouço o vapor da terra
enquanto adivinho o teu coração

se posso atravessar o teu rosto
de um lado colocarei a língua
junto àquela tua diária emancipação como homem
e a aspereza levar-me-á ao outro ponto
onde já me terás deixado o arrepio
pronto e imaculado
na sua concepção vulcanológica
que de noite significa
irrupção
morte
correntes infindas
de encontro à tua boca

um outro caminho
incógnito
a nossa dança tem muito de ritual
de culto
um pouco de quarteto de cordas
quando na verdade somos uma banda de um homem só
sempre que inclinas a cabeça um pouco mais
e desenhas sonhos que nem eu consigo perceber
prefiro pensar que és dono de umas quantas estrelas
uma propriedade que guardas desde os tempos em que brincavas
com o fogo o silêncio uma bola
prefiro pensar que ao tocar-te
ao sentir-te tremer sobre mim
calamos o poema
e deixamos a melodia dizer o mundo

no fundo aquilo que é óbvio
os teus longos lamentos quando entras em queda livre
são as notas que me faltavam
para compreender a nossa forma de fazer acrobacia

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Hybris


queria crer na madeira
que de todas as maneiras
os homens roem e levam ao peito
seria tão perfeito
se o meu telhado
por ter goteiras
fosse mais sacralizado
que as tábuas do sobrado
que tantos joelhos recebeu
assim houvesse um deus
que em vez de te fazer santo
te amasse e entretanto
te ensinasse a amar também
mas que fazer se a minha presença
não é tão beatífica
quanto as alturas magníficas
em que o deus
que quisemos ter
em suas sentenças
nos resolve condenar?

e se o deus sair pela cidade
ao encontro do seu peito
ao encontro de nós?
e se ao cair do altar
o deus encontrar
um homem de face comum
o seu cheiro de carne terrena
valerá a pena
para o beijar e amar
na sua maior inteireza
sem tecto algum?
e se o deus
com seu corpo recém-adquirido
decidir por decidir
que a aliança lhe convém
haverá poema que o contenha
poeta que não tenha
que se calar nem fazer jejum?

e que digo
se o maior perigo
é o poema devorar
o mesmo deus que criou
porque se o templo fechou
foi o poema que o fez desabar?
e eu poeta
acabando pela certa
por matar o mesmo deus
não será por mal
pois quem queima uma imagem
constrói outra miragem
senão com barro
ao menos com um verbo igual

e o deus que então surgir
nomeado ou desconhecido
pau pedra
ouro terra
não será maior que o antigo
nos pecados que permitir
só um corpo diferente
e os vícios das gentes
lhe darão outro céu
o poema que ele abrir
não terá outro sentir
se o poeta for igual

só eu sei que se rasgar o poema
não há dilúvio nem dilema
que me torne menos real

domingo, 19 de agosto de 2007

Dos amores


dos amores sem memória
ninguém
sabe
é que temer ao amor é uma arte
secreta
só os amantes mais corruptos conhecem o segredo
de como beijar sem deixar rasto
há um pouco de estrada no segredo
o segredo
é um desejo de atropelamento
os passos são pontos de fuga
os teus e os meus
desamores

ai os amores
deviam criar uma lei que proibisse
os incautos
os ladrões
e os poetas
de desviarem as almas da juventude
um decreto que apagasse os desvarios
e deixasse os puros à solta
com seus muros brancos de cidades
estéreis
porque a cal não conhece a dor
nem enfim a cor louca dos lençõis
de inverno

o teu amor como tantos outros
amores baratos
é radioactivo
todos encontram vestígios do mesmo
nos seus patéticos quintais
brancos únicos repetidos
porém são poucos os que de facto morrem
de amores

dos amores modernos
de cara lavada
amores sempiternos
casas devastadas
dos amores naturistas
fascistas
sem roupa na esquadra do mundo
dos amores dos jornais
quero um igual ao que vi na página sete
era redondo e a pronto
dos amores quero um modelo económico
um que caiba em casa
entre as plantas e as molduras
abandonadas
um amor que dure
um amor que vá rendendo
um daqueles amores apartamentos
momentos

quero um momento sem querer
porque a esperança desgasta
e o desejo mata
dos amores sem relógio
daqueles de portas sempre abertas
quero a janela
discreta
o vagar do gesto em que o mundo pára

dos amores sem hora
dos amores a toda a hora
dos amores apressados sem bilhete
da estação
da viagem
preciso do desembarque
do adeus
dos amores abraços fugidios
quero o olhar que fica
quero a cadeira vazia ao lado
e a telefonia a anunciar o fim dos tempos

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Infância


rosas azuis

o teu amor é tão impossível como o branco
aquela cor que todos tocamos
invadimos pelas manhãs dentro
e de que tomamos posse através do vazio dos nomes
é fácil termos por certo aquilo que é ilusório
o advento das sombras
veio despojar-nos da propriedade das nossas palavras

coloquei a minha mão numa nuvem
fui eu que a desenhei
tal como o teu rosto
outrora a nuvem era um barco
era uma mãe a dar colo ao céu
o sono do vento era eterno enquanto houvesse poema

hoje a minha infância constrói-se com coloridos blocos de madeira
na antecâmara dos teus braços
vou aprendendo a soletrar o amor com as letras do teu silêncio
gostava de poder condensar o poema numa única palavra
e desta vez a nuvem seria um breve sopro
uma daquelas rimas que se costumava ouvir segredar em Hiroshima
afinal nunca se sabe o que o céu tem reservado
quando se gere um paraíso

precipitação
dizias-me que há horas certas para se colher o poema
quisera eu que não houvesse tempo
todos os voos ficariam suspensos
e as nuvens sairiam daquela sua inércia maquinal
um poema sem versos sem acidentes sem altares
no fundo todas as portas que nos entalam e rasgam são efeitos da seca

e no entanto
só haverá chuva quando eu fechar os olhos
devagar

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Anatomia


o poema
autópsia do pensamento
ainda este tinha vida

poderíamos contestar que as ideias se querem intactas
porém
como nas trocas que os homens fazem
por comércio arte ou apenas despeito
as ideias só nos são úteis quando nos desfazemos delas
este poema veio portanto a ser dissecado
de outro modo cairia depressa nas praças

o verso
célula que cresce demasiado se não a devorarmos
sangue que nos esgota quando não é derramado primeiro

não é de desprezar a guerra que o poema trava
nem a cirurgia em que o mesmo poema entra em choque
quando a voz se desloca um pouco mais para além da luz
o poema desaparece
coma profundo
do corpo velado pela boca dos sem amor

caso as palavras se queixem
que lhes dói
que ardem
que são seduzidas
assediadas
e aí o problema não é delas nem do anestesista
mas simplesmente do facto de haver desejo
dado inalterável desde a primeira criação
talvez
talvez se descubra com tamanha rebelião
que as palavras não nos servem
embora sejam excelentes amantes
e o pensamento continue a procurá-las nas horas vagas
sem compromissos
encoberto por dois olhares
um espelho
e muito absinto

deitamo-nos com o poema
não nos admiremos se este contiver segredos a mais
que não podíamos adivinhar após um breve contacto
é conhecida a conivência das cidades
e das suas chamas
que mascaram os rostos
até ao amanhecer
até ao derrame das águas

numa dessas noites encontrei um poema dado como morto
na mesma vala onde havia mendigado
durante todas as horas do relógio
e por último vendido o seu corpo
se desmontássemos cada peça das nuvens que o compunham
pouco de bom se encontraria
poucas palavras justas
e ainda menos vestígios de sanidade

todavia
é por essa loucura
profunda intensa vasta como um abraço
que nenhum poema morre
nem tem prazer
apenas
finge

terça-feira, 24 de julho de 2007

Refluxos



vomitar

certamente conheces o termo
sempre que te peço um abraço
um beijo
o calor do teu gesto
há algo de irrupção desmedida
entre a minha boca e a voz

bastar-me-ia o silêncio
afinal
foram tantos os anos em que vivemos a recibos verdes
tu guardava-los na mesma gaveta onde esperava o coração
bastar-me-ia que fosses
sei lá
um espaço de escuridão
dois braços numa caverna
o começo
pois tudo veio das trevas

incluindo
o meu corpo

consegues desenhar os passos
com que te pedi um pouco mais de água?

certamente
são irrelevantes os gritos
as paredes que não vêem tinta nova há décadas
as fissuras que se tornaram surdas
nada
quando foi que perdemos o pé no meio da corrente?

correntes prisões passos decapitação
possivelmente naufrágio
naufrágio sem dúvida
nem o nome do navio resistiu

conheces o termo
o começo e o desenlace
confessámos tantas vezes esses mesmos segredos
enquanto arremessávamos a luz contra os objectos
não eram os móveis que se deslocavam
eram tão-somente
as palavras
os ossos

deglutição
algo não passará de hoje
no trajecto do mundo pela minha boca

sábado, 21 de julho de 2007

Arame farpado

jurei ser o teu olhar a tocar-me
piano em velocidade crescente nas rimas do comboio
jurei ser veludo
cada estação trazia-me o choque do tecido que afinal
era somente a tua pele de teclas novas
imprudentes
esquecemos o fio de terra quando descarrilámos

foi tão admirável a queda naquela tarde

escuro muito escuro
não há perdão para os amantes em viagem

atenção
é um pássaro
ou a noite suspende-te os braços?
e que me importa se é Verão
se mo dizes ou se o cantas?
apesar das janelas
é o teu corpo que brilha sob as minhas mãos
e em cada beijo que dou na sombra áspera do teu rosto
na devastação da densa floresta ao longo da tua pele
lembremo-nos do veludo selvagem dos pianos
há seiva pura a escorrer pelos carris

fios leves e afiados recortam-nos os gestos
cordas
uma em Sol outra em Mi
arames unem de repente os nossos pedaços de naufrágio

porque ao longe
caem aviões nos meus sonhos

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Awen


luz arrancada do silêncio
luz órfã
novos nascimentos em teu olhar
e depois há degelos em cada toque
faz-se terra em cada maré de carne
faz-se de conta
finge-se
o mundo é a promessa que não deixámos escapar

pontes
julgavas ser eu a passar
mas eram as tardes em Babilónia
o império crescia debaixo da tua dormência
havia frondosos jardins entre os dedos
pontes
afinal éramos uma floresta em Elsinore
pontes
moedas de troca
não traias o que viste quando te menti tão alegremente

e o que seria do mundo se te perdêssemos?
a mesma luz e a mesma sombra
seriam a batalha de uma outra geração
em vez do café teríamos aves
e em vez do fumo incêndios
os mitos ressurgem na fonte
do nosso mistério de asas abertas

os lamentos não encontram nome
na história das águas

tu não és a cor

recuperar as folhas
turbilhão incúria queda
o vento aponta-nos as cinzas
como caminho de redenção
inspiração
ar que se respira queimado
praia de arremesso para novas convulsões

e se a epilepsia
nos recomendar que nos lancemos de um precipício
lembra-te de Creta e dos seus cálices azuis
um dia serão eles a dar-nos a paixão a beber

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Tratado


voar

é a alma que rompe os espaços
uma asa encontra-se com o seu reverso
face e contra-face
espelhos
suspensão

o céu não existe a menos que o digas

que é feito dos planos que dizias ter?
onde a tua estratégia,
o teu domínio
a sombra da tua mão a afagar a minha?
e da próxima vez que nos tocarmos,
haverá mais luar do que da última vez?
onde,
onde a varanda para os nossos passos?

voar

quando cresci ouvi do mundo
que ele só era mundo porque
porque
olha, porque as pessoas viviam entre cortinas
alguém prometia um pedaço de cetim
e no auge do aneurisma
outro alguém fechava a porta
era simples fazer medicina
tão simples
como mentir

no fundo o que todos nós fazemos
eu
tu
no fundo o que fazemos à beira das janelas
não é flutuar
não é verter as nuvens para dentro do nosso beijo
bem mo querias fazer parecer
mas

voar
só quem percebe de física é que voa

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Andrómeda


fizeste de mim
escudo e noite
palavra assassina
poeta a virar a esquina
grilhão e archote
luz imersa
praia deserta
foste o centro e o fim de tudo
e no universo
eu fui a Andrómeda dos desejos
retirada instantânea
retrato e negação
novo capitel em cada praça
o teu peito não era a condenação
marcha e parada
luzes
silêncio

pedaços de ar
o sol é outro quando ressurges

e porquê as palavras?
porquê o toque
a esperança
o pórtico
o convite
o pranto
o amor
e
porquê o mundo?

sábado, 26 de maio de 2007

Mensagem


Sete da manhã. Cheguei agora à cama. Incomoda-me tanto este silêncio, esta dor seca, muda, clandestina, esta aridez que se sente até na boca. Língua deserta de luares vermelhos e luzes arenosas. Talvez fugir, talvez embriagar-me, perder-me, afinal talvez o silêncio seja um mar que se oferece como berço para nele mergulharmos e ressurgirmos com nova forma, ou talvez a panaceia seja uma válvula de vidro onde se retêm todas as demoras e todos os resquícios de bebedeiras antigas, corpos, relances, nem os nomes importavam, só o toque, a sugestão, a pedra filosofal desenhada no calor. Talvez entrar em acordo com alguma força que me corte o fio e faça verter sangue das veias da memória. Talvez... Sei apenas da dor. A tristeza é um efeito colateral que não estava previsto. Da tua ausência esperava apenas guardar a ressaca. Agora como em tantos outros momentos, "comme on a pas le choix, il nous reste le coeur"... E se o coração nos faltar, e se ele se cansar de repente?

- E eu, escolhi-te?


Agora, neste instante, enquanto amanhece, recomeçam os murmúrios, o choro fino e arrastado pelos corredores, as mesmas e constantes rezas estúpidas a um Deus que não está, tem mais que fazer ou simplesmente não é! Agradecia-te que não me tivesses demolido aquela infância em que eu ainda acreditava em altares e sacrifícios e esperas. Confiança. Ascensão. Ou mero alheamento. Recordas-te? Hoje, o prenúncio da discussão, a estagnação doentia, até mesmo o ar tresanda a pessoas mortas por dentro, as palavras que se ouvem trespassam-nos, dizer "olá" ou "bom dia" (ou outras mentiras em que incorremos por vício) é puxar de uma faca longa. Manicómio ou lar, afinal poucas letras separam o riso da loucura...


E gritar!... Ter na boca uma janela aberta de onde se precipitam os pensamentos e tudo se reduz a minúsculos elementos de uma nova terra já estéril, carbono gasto como os gestos já de si oxidados. Gritar. Porque a manhã, o despertar, a lucidez é frágil como um corpo totalmente exposto, violado já em potência, à espera da sua derradeira deturpação.


E como, como gritar mais, será que a cidade não nos ouve, será que os edifícios sempre eram de betão e não sabíamos? E como pensar seja o que for, agora que levamos as mãos à cabeça e a nossa loucura é uma estátua a mais, afinal o betão comunica-se e tem voz, e grita por toda a cidade: "olhem, parem, existe dor, as aves fogem, não vêm que o solstício se passou para o lado do inimigo?" Gritar porque algo faz falta, porque de noite os faróis são apenas a sombra dos nossos passos desencontrados, varandas abertas, vento e mais vento, uma torre mascarada de luz, e mesmo de dia tudo o que temos é uma única estrela na mesma cidade inerte. De dia só uma estrela nos pede que avancemos e accionemos a alavanca, para que tudo seja fogo, pura chama, pura combustão, pura cobardia, tempo desfeito, tempo opressor, tempo fora de tempo, ou seja, um Deus de algibeira, que é o mesmo que dizer:


- Acabou-se, está consumado!

segunda-feira, 14 de maio de 2007

Reincidente


Desenterrara um antigo poema de um daqueles cadernos onde antes descontava o silêncio e adiava o esquecimento dos seus dias. Curiosamente, desde que tinha começado a conviver com as palavras como uma outra pele que vestir nas noites de frio, quatro anos antes, nem as suas emoções se tinham esquecido dele. Aquele título. "Solidão". Naquele momento conseguiu encontrar atenção suficiente para captar a música que tocava na rádio. Pensava ele que devia ser útil reparar nesses pormenores, afinal as coincidências escondem-se onde menos esperamos e também o que elas nos revelam pode ser totalmente inesperado. "Je cours, je cours", dizia o vocalista... Correr para onde? Paris tão longe e com a cidade lendária também as luzes e mitos do coração se tinham desvanecido. Correr para onde?...


Anos antes aquele poema tinha sido escrito ao som de uma ária qualquer que desconhecia, mas que ouvira na altura porque com as lágrimas descobria outros sons e não lhe restara paciência para vasculhar as ondas hertzianas em busca de algo diferente. Haveria alguma relação entre ambas as vozes que ecoavam em cantos distintos da sua mente? Coincidências, pois claro. Entre cada um desses dois pontos da memória traçava-se uma linha oblíqua pela qual tantas pessoas haviam passado (ou será que era essa linha que se estreitava e decapitava os olhares que se cruzaram?), de tal forma que a meio caminho tinha perdido a noção da geometria, da simetria das coisas. A noção do céu e da terra. O inferno, esse, era um gesto furtivo com nome de gente que por vezes acendia para se lembrar do sabor da noite.


Lembrava-se também daquele odor, algures entre o hálito a álcool e a loção de barbear, que aquele estranho fizera entranhar-se no ar numa daquelas noites de chamas acesas e que ao beijá-lo lhe tinha comunicado toda a sua embriaguez e todos os seus segredos. Fazia-lhe falta o toque, o abraço, o colo até. Tinha amado aquele homem, sem dúvida. E daí, talvez pudesse colocar isso em causa. Não lhe era líquido se o que procurava era companhia ou tão-somente salvação. E os Messias, como ele bem sabia, não eram reais. Todas as doutrinas e restantes mensagens de pedra davam conta desse facto. Nem mesmo a voz do coração fazia lei por aqueles dias. Ia ter à janela, ficava a observar a cidade que era agora a sua, enquanto os caixotes que trouxera nas mudanças se eternizavam atrás dele. Tanta gente. Tantos olhares. As ruas cinzentas, a tarde que caía depressa sobre os edifícios, as praças, as estátuas. No fundo, à medida que o Sol deixava um rasto róseo no seu rosto, também ele era mais uma estátua a fingir que visitava as nuvens. Estender a mão naquele instante podia chamar a atenção de alguém perdido, alguém com palavras novas. Talvez tudo o que recebesse em troca fosse um breve olhar, turismo dos desejos, e acabaria obrigado a abandonar o sonho com as mãos vazias.


Olhou então de novo para dentro do quarto. Agora que a estação era outra, não teria trazido bagagem a mais?

Inscrição


esperança

hoje és depósito da embriaguez que os outros esquecem pela boca fora

terça-feira, 8 de maio de 2007

Encontro II


"Obrigado".


Resposta lacónica, a tua. Por instantes pensei que estivesses desagradado com o facto de eu ter voltado para a mesa com o nosso pedido. Talvez me quisesses longe e eu fosse um fardo para ti. De qualquer modo, notei uma certa distância no teu olhar que tanto me intrigou como me atraiu. Porém, a avaliar pelo teu sorriso, parece-me que posso estar à vontade. Não deixa de ser curiosa a forma como nós os dois estamos ainda algo apreensivos, apesar de visivelmente nenhum de nós ser um novato por estas andanças. Eu mesmo estou surpreso por ainda continuar com algumas reservas em situações como esta, mesmo após quatro anos de viagens pela noite, entre vários rostos e corpos. Talvez eu tenha chegado algo tarde a este mundo, e por isso mesmo algumas situações, pessoas, gestos, códigos, contenham ainda uma certa estranheza para mim. Não trocámos ainda muitas palavras, mas tenho a impressão que tu começaste a caminhada há mais algum tempo. Será possivelmente contigo que eu encontrarei algumas respostas. Mais umas quantas.


É complicado o mundo visto de onde estou. Daqui a pouco até mesmo a tua expressão será difícil de gerir quando eu conseguir encontrar palavras para as muitas perguntas que terás aí guardadas dentro de ti. Nem me precisas de pedir: "Fala-me de ti..." Eu consigo adivinhar o que pode ir na tua mente neste momento. Também eu já vi muito, e o que não sei, consigo imaginar. Estava eu naquele balcão, a ver tanta gente a passar, absorto nos meus pensamentos, ou por vezes cessava todo o pensamento e ficava apenas suspenso entre o meu corpo e o copo, a tentar encontrar um momento de paz mesmo no meio da maior confusão, como em muitas outras noites. De quando em vez estendia as mãos em cima da mesa, ou esfregava-as uma na outra sem motivo nenhum, e lembrava-me do dia em que cheguei a casa sem a minha aliança posta. Na época disse à minha mulher que a tinha perdido durante o dia, ao lavar as mãos, ou de um outro modo que inadvertidamente fizesse deslizar o anel para dentro de uma sarjeta qualquer, nem me recordo. Na verdade eu tinha-me limitado a retirar discretamente a aliança e a arrumá-la para sempre numa gaveta do escritório até nova ordem, da mesma forma que aquilo que ela representava tinha perdido todo o significado para mim. O facto de ela ter aceite prontamente a desculpa sem demais questionamentos talvez indicasse que para o lado dela as coisas tinham igualmente resvalado, algures, lá atrás, não importa quando nem onde, se calhar tudo era para ter acontecido assim, desse por onde desse. Porém, o facto de por fora parecer um homem igual a todos os outros não me livra de ter que te contar tudo. Ou pelo menos aquilo que eu conseguir dizer por agora. Não me peças muito mais, para mim tudo já é demasiado complexo para me preocupar com razões que nem eu conheço. Preciso da chave para o paraíso, por acaso tu traze-la contigo?


Desta vez as aparências não me servirão de refúgio.


(E ao fundo, a sair pelas colunas de som, aquela velha profecia que me visitou tantas vezes e ainda hoje se cumpre: "Tu estás só e eu mais só estou...")


Seja como for, hoje tenho duas filhas pequenas, e até nem me considero mau pai, apesar das noites longas no trabalho ou noutro lugar qualquer. Bem sei que a concepção delas não aconteceu numa relação de profundo amor, como todos os filmes nos prometiam, até mesmo a mim, quando era mais jovem e tudo tinha o potencial de ser passageiro, até mesmo aquilo que eu sentia podia ser passageiro, mas não era possível naquela altura, não era e pronto. Mas creio que não estarei a mentir se eu disser que algo naquele instante ainda era real. Nasceram duas crianças, são parte de mim, existem, dei-lhes colo, o que mais podia pedir? Não será isto também um pedaço de verdade? No fundo, espero que um dia elas sejam capazes de compreender quando tudo for claro. Nem eu consigo perceber-me inteiramente, cada dia é uma enorme incógnita, entre segredos, chamadas ao telemóvel feitas longe dos olhares de todos, saídas enigmáticas, momentos de fronteira onde tudo se joga, a minha vida, o meu passado, o meu porvir.


O teu silêncio. Peço perdão por esse teu sonho a mais.


E de repente tentas dizer-me: "Bem... Sabes que nós só podemos ser amigos... E..." A resposta esperada. Compreendo. Sabes, há pouco, quando reparei em ti e nas tuas várias tentativas para cruzar o teu olhar com o meu, senti uma certa esperança dentro de mim. Não me perguntes exactamente o que é que eu esperava, apenas havia algo que me impulsionava para a frente. Neste ponto da minha vida, tornaram-se raras as ocasiões em que algo realmente me entusiasma. Obviamente que não foste o primeiro, e sim, já encontrei várias pessoas que me fizeram sentir-me bem num momento ou outro. Não sei se ainda procuro o amor. Essa é uma palavra tão relativa, são tantos os factores, a química, a companhia, as palavras, o toque, a simples presença sobreposta ao tempo... Não. Não te sei responder. Sei apenas que neste instante, que é tudo o que me é dado ver, tu apareceste e interessas-me. Isso basta-me. Para ti, provavelmente não será o suficiente, mas tu mesmo já terás passado pela mesma situação que eu, a de te interessares por alguém apesar de teres feito as tuas promessas a outra pessoa. Acontece a todos nós. Não me negues. Nem precisas. Deixa-me só aproximar-me de ti. Já te disse que me basta a tua presença. O teu olhar. As tuas mãos. O teu cheiro. O teu rosto carinhoso e aberto enquanto te digo tudo isto ao ouvido.


"Sim, vamos", acabo por te dizer. Não sei o que seremos depois desta noite. É possível que eu te volte a ligar, porque não? Quem sabe? Se calhar já me terás esquecido e procurado outra pessoa, alguém que te possa dar aquilo que não consegues encontrar em mim, ou então o mundo será tão pequeno que um amigo teu me conheça também e te diga uma série de coisas que te desagradem e que eu nunca chegarei a saber, por melhor que mas reproduzas mais tarde. Um dia, enfim, poderemos passar um ou outro fim-de-semana juntos, encontrar-nos, tomar um simples café, sim, como amigos, como insistes em me repetir apesar de daqui a pouco estarmos os dois no teu quarto. Só posso imaginar aquilo que consegues ouvir quando me tocas.


Esta noite, porém, enquanto nos abraçarmos, preciso que me respondas a tudo o que eu não te contei. Tudo o que me escapa das mãos em cada segundo.

segunda-feira, 7 de maio de 2007

Encontro


"Aqui tens. Foi isto o que pediste, não foi?"


Sim, foi. Agora que voltas para a nossa mesa com as bebidas, percebo que também estava à espera das tuas palavras. Como em todos os sábados à noite em que procuro esta mesa, ou outra qualquer em caso de emergência, hoje vim cá porque queria ouvir as mesmas palavras, à falta de melhor repertório. Quem sabe quantas vezes não as repetiste a outras tantas pessoas, se calhar até nesta mesa, numa noite em que eu cá não estava (possivelmente porque eu estaria com outro alguém)?



Esta mesma mesa, as pessoas a dançarem em frente, uma música barata qualquer que não vem ao caso (afinal todas as canções soam ao mesmo quando estamos sós), e em cada noite um rosto diferente. Hoje eras tu quem me acenava do balcão. Sei que eram muitos os olhares postos em ti, e por momentos pensei que estava enganado, mas afinal era comigo que o teu olhar tratava de silêncio. Seja como for, é quase certo que os outros homens te tenham esquecido depressa. Abstraí-me do que me rodeava quando vieste ter comigo, mas sei que no meio da solidão deixamos de escolher pessoas e para o coração o mundo não é mais do que uma colecção de fragmentos. Mesmo que alguém mais aqui te continue a desejar, se calhar mais até do que eu, sossego-me com a noção de que um dia ele também terá que aprender. O quê, nem eu sei. Tudo o que me resta depois de tantos anos é a indiferença. Hoje és tu, poderia ser outro homem qualquer, o que interessa é manter viva a ilusão. Talvez fosse melhor eu nunca ter aprendido.


"Estás tão calado...", dizes-me tu. "Tenho andado um pouco cansado, é só", tento responder à pressa. E de novo pego na tua mão, a tentar assegurar-me de que não te vais embora. Sei que amanhã tu sairás pela porta do quarto na mesma e depois seremos pouco mais do que estranhos, mas a loucura leva-me a acreditar em ti. É tão conveniente acreditar em ti, deixar-me levar, ser dominado... E rio-me, rio-me como se houvesse uma ironia tão fina por detrás de todas as coisas, e a consciência de tudo isso me esmagasse... Tu, por teu lado, estás encantado porque julgas que o meu sorriso se deve à tua presença, e isso faz-te sentir-te especial no momento. Também tu me fazes sentir-me bem. Olhas fixamente para mim, começas lentamente a aproximar-te para estarmos mais perto um do outro e a conversa diminui cada vez mais de volume. Daqui a segundos estaremos já a sussurrar ao ouvido um do outro, e a partir do momento em que deixarmos de ouvir a balbúrdia lá ao fundo nunca mais teremos um ponto de retorno. Mas nunca terás a honra de me teres conquistado. Quem me venceu fui eu mesmo. Fica descansado. Terás ajuda no meu naufrágio.


Volto por segundos a levar o copo à boca, talvez para sossegar mais rapidamente o ruído de um mundo em ebulição. Tenho pressa. Digo-te: "gostava tanto que este momento nunca passasse", e apesar disso continuo sem saber onde estou. Se me desse ao trabalho de pensar suficientemente no assunto, talvez te deixasse neste preciso momento. Talvez acabasse por voltar cá na próxima semana e tudo se repetisse, com a diferença que da próxima vez eu já estaria mais anestesiado e os meus pensamentos não me doessem tanto. Preciso das tuas palavras.


"Não achas que é um sinal o facto de nos termos encontrado aqui, hoje?..."


Olho para o copo na mesa enquanto ouço essa tua frase proverbial, tão gasta mas tão eficaz, tal como o teu corpo, decerto, e tento esboçar uma resposta adequada. No dia em que alguém decidiu que a água não bastava para matar a nossa sede, ninguém conseguiu prever o que faríamos quando os aditivos a mais nos soubessem a deserto no final. Obrigado por criares tantas necessidades artificiais e fictícias dentro de mim. Obrigado pelo beijo insinuado que amanhã será apenas um cartaz publicitário na minha mente a dar-me conta de mais uma ilusão que adquiri. Obrigado, porque daqui a dias, quando me quiseres de novo, numa das tuas horas vagas, dir-me-ás para me convencer: "mas olha que eu até te revelei o meu verdadeiro nome, e isso não é comum na primeira noite", como se me tivesses feito o maior dos favores.


E o que fazemos quando a primeira ilusão não nos bastou? Eu, até hoje, tenho recaído vezes sem conta. Pode ser que da próxima vez seja verdade. Pode ser que haja algo real no meio desta gente toda além desta mesa que já conhece o suor das minhas mãos e o calor de um coração a bater depressa, enfim as expectativas que os homens que vou conhecendo a cada noite me fazem questão de diminuir. Pode ser que eu de facto seja alguém especial. Tu também, se calhar. Não será esta noite que eu conseguirei descobrir isso, porque já há muito que separei da minha alma as carícias e olhares que ainda vou trocando. Por isso é que tu não me vais conhecer verdadeiramente para além dos destroços que eu te deixar ver.


Por isso é que, para além desta noite, seremos sempre dois estranhos e eu mesmo continuarei a surpreender-me com o homem que aparecer diante do espelho. Seremos eternos desconhecidos unidos pelas mais complexas artes do mercado. Mas, curiosamente, quando te olho nos olhos consigo perceber que, talvez neste momento, estejas a ser sincero. É um defeito de fabrico que conseguirás resolver daqui a uns anos. Ou meses. Ou talvez consigas ser completamente insensível (ao menos nisso poderás consolar-te com a ideia de que és perfeito) depois de apenas mais alguns encontros. Eu nunca te direi nada acerca disso. Mas sei que depressa te encantarás com outro olhar silencioso, outro número de telefone, outro aroma, outro quarto, com a mesma intensidade com que hoje te dirigiste a mim em vez de outra pessoa qualquer. Entretanto, gabo-te o teu discurso de publicitário. É por me dominares por esta noite (já houve tempos em que eu conseguia deixar-me perder durante muito tempo, mas isso era quando eu ainda tinha nome) que me encosto mais a ti e peço a conta.


"Vamos?", digo-te eu.


Preciso que me sirvas as tuas palavras. Nada do que me ofereceres depois será mais real e sanguíneo do que a tua voz.

quarta-feira, 25 de abril de 2007

Manifesto


Da liberdade como uma ilusão. Da liberdade como um sonho. Da liberdade como uma promessa. Do amanhã como uma linha suspensa entre nós e o horizonte. Das palavras desarmadas. E das armas do coração. E quando tudo são brumas para além do segundo presente, vem a chacota, o sarcasmo e as lendas sobre uma praia de onde nunca se partiu mas de onde se diz que a vista não traz bom augúrio.



E porque o silêncio é a mais provocadora das tentações, somos obrigados a falar. Para que os momentos não morram nem se percam e a memória não se torne demasiado curta para os nossos passos. A revolução começa todos os dias na manhã dos nossos gestos, na antecâmara dos nossos pensamentos. Os ventos da Primavera trouxeram-nos primeiro o luar, os sinos de uma nova vida e a marcha de um povo desperto. Mas Abril pode sempre ressurgir nas ruínas de cada minuto gasto.



Um dia a revolução será de novo uma dádiva gratuita de cada um para todos e a chuva trará uma nova vaga de pétalas vermelhas. Entretanto, ainda nos falam por metáforas, e o mundo ainda nos vigia a cada ideia e a cada palavra. Porém, não desistimos de ceder às tentações daquela voz interior que nos ensina a dizer não.



Ser livre é também saber dizer não, de tal modo que se diga sim a quem somos de facto. Cada um de nós e a Humanidade em conjunto. Quem se esquece de onde veio e onde está nunca se reencontrará à frente, na estação seguinte da viagem.



Era impossível continuarmos calados. Mesmo já no final do dia, prestes a regressar à loucura com que o mundo se delicia na sua inércia cheia de lucidez.



Viva Abril.

terça-feira, 17 de abril de 2007

Outro


deixa-me encontrar-te
deixa-nos ser encontrados


a voz do mar não é a tua, meu amor
parece-me que a ouvi longe do teu corpo
tu eras tu como sempre e em cada retorno
eu não era e no momento fui a miragem
o somatório foi uma mútua ausência
enquanto as marés nos falavam
de tantas partidas


de parede em espelho em parede
vences-me à luz do dia


invades-me
as palavras são a noite dos teus beijos


e no teu olhar julguei descobrir o mundo
vi num copo de cristal a nossa sorte
o brinde não foi a nossa matéria ao longo do cetim


ouvia-se outra voz quando me falavas de amor

quarta-feira, 28 de março de 2007

Janela aberta


Janela aberta.
Horas e horas de sono perdido
expostas ao escrutínio implacável do Sol.


Será que o mar resistirá à força bruta da fuga das nossas almas?


De novo o aroma de novas folhas,
novos esmagamentos, cataclismos,
e vinhos cansados embora prematuros;
de novo o perfume da tua ausência
a passar com a tua sombra pelos lugares com pegadas frescas
onde não mais caminhas.
No início dos tempos,
deve ter havido apenas o recreio deserto
onde deixámos o olhar de lado.


É tão perfeito o avesso de todas as coisas.


Luz.
Sempre o mesmo pedaço de sonho e rebeldia,
ascensão e queda,
a invadir os meus olhos.
Do ponto de vista de quem se debruçou sobre todas as noites
e de todas guardou um pouco das vozes que foi ouvindo,
o amanhecer bem poderia ser uma maré baixa
onde cada traço é puro jogo
e as cores são um negócio à parte
entre o olhar e a dor
pelas mãos de um dia de fúria gravadas no rosto.
De espelho em espelho, nada seria distinto.


Colei-me ao dia porque a sedução da cegueira me fazia respirar além da janela.
Fui caminhante em terra árida,
e por instantes a revelação fez-me perguntar-me a mim mesmo:
"Como te chamas?"
"A quem persegues debaixo deste sol?"
Contudo,
notei que a minha barba continuava a brilhar como fogo,
como sempre,
à luz da ira e do sangue,
e percebi que eu ainda era outro
e que o meu nome ainda não me pertencia.


Eis que o dia tinha chegado.
Os anjos repetiram o seu voo estreito.
O vento prosseguiu o seu ditado.

segunda-feira, 12 de março de 2007

Alvedansen


Encontrar-te em cada pedaço de caminho das minhas mãos como numa floresta onde todos os espíritos do fogo e do vento encontraram um lar seguro longe das mitologias e das demais crenças humanas. Ser para ti um raio de luz ou fonte de água a cada nuvem de passagem sem término ou estação. Viver numa permanente dança de roda onde os meus dedos surpreenderão e resgatarão os teus enquanto nos seduzirmos em torno da grande fogueira. Ser eternamente cíclico e constantemente mutável, sempre que a Terra nos pedir novos cânticos para todas as cores que nos forem oferecidas.


Ou simplesmente regressar aos teus braços e ver nos teus olhos todos os mundos que me prometeram desde que comecei a minha jornada.


No infinito, serei ponte de todas as vozes vindas de qualquer vento e de todos os barcos que ancorarem no meu coração. No ventre da noite, seremos engenheiros de novos mistérios e o arauto de uma Primavera só nossa, de um lugar quintessencial onde a qualidade principal de cada ser é, mais do que caminhar, nascer.


Quando escreverem a história do nosso reino, ninguém se recordará do momento em que recriámos o fogo longe dos olhares do Sol e da Lua com as nossas mãos ávidas de proximidade. Mãos vulcânicas. Combustão lenta, numa alquimia em que cada membro une a carne ao seu espelho, em que o olhar descobre o aroma de uma lenda antiga nos tesouros de outro olhar. Desejo erguido desde as profundezas dos nossos corpos feitos raízes inversas de um solo ainda virgem. De entre as flores e os beijos, ascenderemos finalmente para fora do tempo. O silêncio permitir-nos-á jogar com a cegueira dos homens e transmitir o nosso poema unicamente por sussurros, entre nós os dois.


E a nossa imortalidade será um segredo só nosso.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

De profundis


Acho que o sentido que a nossa existência poderá ter (ou não) passa por esta capacidade que temos de a questionar, de a reinventar, de lhe querermos dar um nome. Diante do silêncio da morte, ou mesmo da efemeridade geral de todas as coisas, ainda sentimos a tentação de falar, de sentir, de criar algo novo, algo que nos ultrapassa. Entre nós e o silêncio, o dever de falar. Vivemos porque temos que viver. Somos rebeldes desde o começo e em cada instante da nossa vida.


Acho que a vida não teria o mesmo interesse nem teríamos a mesma dignidade se deixássemos de nos revoltar, se nos conformássemos com tudo o que nos magoa, afecta, transtorna.


Diz-se que a linguagem é uma forma de nos tornarmos donos das coisas que conhecemos. Nada existe para nós, humanos, se não formos capazes de o nomear. O simples facto de conseguirmos ter consciência do esquecimento último de todas as coisas e de lhe conseguirmos dar um nome nas nossas preocupações e reflexões já indica que somos, de alguma forma, donos do mistério. Donos daquilo que outrora nos desgastava.


Acredito que Sísifo não encarava o seu castigo como algo penoso. A partir de uma certa altura, a consciência de como as coisas eram deverá tê-lo feito aceitar a sua condição e retirar daí o seu próprio sentido para o seu viver. Afinal, a sabedoria não consistirá simplesmente em sabermos como as coisas realmente são, sem máscaras, ilusões ou devaneios?


Diante desta questão que nos desarma quando concluímos que a nossa vida, ou antes, a vida em si mesma, é absurda, não te respondo que a vida ganhará sentido numa futura eternidade, nem com alguma menção a Algo ou Alguém superior. Respondo-te com um elemento que nos é bem interior.


Não existe um sentido para a vida que nos seja dado à partida, como um direito adquirido. Viver e existir não são sinónimos absolutos. Não podemos limitar-nos a agir como os outros animais, apesar da nossa indiscutível e necessária natureza carnal, pois, como referi acima, o facto de nos questionarmos, de sermos rebeldes, de pensarmos, imediatamente distingue-nos dos demais seres, e o consequente livre-arbítrio que nos permite escrever a nossa própria história pessoal não nos deixa afirmar que somos meros escravos dos nossos instintos.


Certo é que não somos intrinsecamente bons nem maus, quanto mais não seja porque todas as morais têm um prazo e um contexto. Enquanto conjuntos de normas, são produtos culturais e produtores de cultura. São tão efémeras quanto nós mesmos. Mas as nossas escolhas, livres e racionais, verdadeiramente esclarecidas (por vezes necessitando de alguns saltos quânticos que porventura confundam a nossa lógica habitual), deverão unicamente escutar a nossa voz interior, respeitar a nossa dignidade enquanto pessoas (que teremos que ir construindo a cada dia). Daí nasce toda a verdadeira ética. "Torna-te naquilo que és", diria Píndaro.


A vida, por ser um mistério, tem valor por si mesma. Apesar do absurdo, é o seu próprio abismo que a torna valiosa.


Quanto a cada um de nós, se não somos nem "bons" nem "maus" por natureza, temos apenas a certeza de que somos imperfeitos e limitados. Essa mesma imperfeição deverá levar-nos a procurar completar o que nos falta junto de outras pessoas, de outros seres humanos desafiados pelo abismo. A rebeldia não nos impedirá de morrer, mas levar-nos-á a algo melhor do que todos os paraísos de inércia em que preferiríamos refugiar-nos.


Nós somos aquilo que fazemos das nossas relações.


Ouvir-nos a nós mesmos, tornarmo-nos naquilo que somos, tudo isso passa pelo Amor. Não um amor abstracto, romanceado, irrealista, um amor reduzido ao sentimento, à paixão, ao entusiasmo passageiro. O Amor age exactamente contra a efemeridade. Contra a mediocridade também. Diante do absurdo, não nos fechamos em nós mesmos, mas somos seres-para-os-outros. Quanto mais não seja para sermos a voz que desperta a multidão do seu sono.


Nunca te esqueças. Diante do silêncio, a maior das tentações é a de falar. Diante do esquecimento, a maior das rebeldias é voltar a escrever tudo desde o começo. Tal e qual como nos foi dito dentro de nós.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Serventia da casa


O que queres que te sirva nesta hora de cacos e restolho
e veias abertas,
meu amor?


Anda lá, diz-me...


Queres
luzes acesas,
trovoadas,
raios que te partam,
faíscas de uma grande fogueira sem começo,
antenas de uma só frequência,
missais onde desdobras as muitas horas
que passam de joelhos no teu lindo soalho de cera?


(Ah, como se tornava bela a tua face
quando me punhas a rastejar pelo teu espelho)


Queres um Deus à tua imagem,
Alguém que te exalte,
um altar onde possas mostrar ao mundo
toda a tua podridão às cinco horas da tarde?
Queres um cálice para te consagrar o chá?
Com ou sem açúcar?


(Cuidado,
que o médico bem te avisou
que demasiados glícidos podiam aumentar a estupidez do teu carbono
e assim comprometer seriamente todas as políticas de combate
ao aquecimento global)

Queres a tua cabeça
servida numa bandeja de prata
diante das tuas jugulares tão transbordantes de vida
e de culpa?


Os pensamentos não se oferecem, querido.


Fabrica-os tu.


Tenho que ir confirmar se o Sol já secou.
Vai ver se estou lá fora.
Eu espero.


Durante o tempo que for preciso,
esperarei com a voz presa entre as tuas mãos.
Deve ser difícil ser um lobo sem presa
sobretudo
porque a tua selva é de plástico
e estava em saldos quando te conheci.


Ainda queres a tempestade
ou preferes que o vento se encarregue
de te levar a casa?


Bem me parecia que só tinhas preferido o Inferno
porque o teu hotel estava em obras.


"O que tens feito desde que te dei o último brinquedo?",
perguntas-me tu.


Tenho chorado, o que é que achas?


Hoje fui ao mercado.
Numa das lojas disseram-me que eu não tinha preço,
mas que precisavam de ti para preencheres a montra.
Ao que consta,
ficarias a matar com a decoração
e com os falsos cristais do tecto.


Agora,
para aumentar o valor da troca,
importas-te que eu te mate?
Antes disso, deixa-me beijar-te de novo.
Só mais um beijo para a viagem.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

Olhar de vidro

Olhas-me.


No final dos tempos, ainda restará outra verdade além do olhar?


Mesmo que as rochas nos ultrapassem na contagem do tempo e que todo o mundo seja uma breve miragem, nós sobreviveremos no casulo da suspensão, pois, dizem, há um espírito que nos precede.


E seremos nós a alimentarmo-nos de tempo em cada trilho de sangue.


As luzes estéreis da cidade guardavam-te no seu luxo clandestino, naquele ruído que manchava a multidão de sombras vermelhas. Por sorte o teu lugar predilecto era ainda menos iluminado, preso ao canto onde as paredes eram mais lentas e as mãos se podiam movimentar melhor.


Nunca deixei cair das ruelas estreitas das minhas mãos o teu intenso cheiro a excessos deambulantes e a longas horas de aridez, nem perdi o calor do teu corpo em cada recanto exposto onde a lua me devastou.


Esta é uma daquelas vidas em que tudo o que eu mais queria era um abraço.


Não me condenes. Não me apontes. Apenas continua a olhar-me.


Não te desvies de mim.


Não te desvies do enquadramento da nossa luz.


Olha nos meus olhos. Bem sei que, se me demorar demasiado a contemplar-te, acabarei por ser atraído ao Hades e terei acesso a todos os segredos que o espelho me esconde. Anjo ou demónio, sei que as tuas asas me farão perder a minha alma de qualquer modo, de tal forma que um dia te oferecerão alvíssaras para que me devolvas ao mar.


Nunca aceites nada do que eles te disserem.


Estou suspenso. E assim ficaria para sempre, desde que cada arrepio me trouxesse de novo àquele torpor inicial em que nada existia debaixo do Sol além do teu rosto e das promessas infinitas que caíam dos teus lábios sobre o meu peito.


Passa-me o teu copo. Quero partir o nosso olhar de vidro contra a manhã do mundo.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Dança


Fazes-te silêncio.


No sótão onde passámos a tarde a emprestar algum peso aos nossos corpos tão desejosos de novos voos, tão sedentos de céu nas entrelinhas dos dedos, a luz média recorda-nos a porcelana dos dias e a delicadeza das antigas caixas de música que por vezes abríamos só por uns segundos por querermos perfumar os intervalos entre os nossos beijos e a janela. Como eram eternas aquelas gotas de precioso âmbar que fazíamos ressoar como breves risos de crianças por entre as colunas...


As fotografias eram o estúdio onde redefiníamos as prioridades do coração para o instante seguinte, eram o tecido de baile, a prática e o exercício de cada passo do nosso encantamento. Éramos vários no milagre multiplicador do movimento, linha a linha, e nem as margens envelhecidas da imaginação nos impediam de nos tocarmos como pianos num segredo semi-adormecido. Sim, meu amor, nunca perdi as tuas palavras marítimas em formação cristalina junto aos meus ouvidos. Depois de ti, não haveria nenhuma outra brisa nem nenhum outro olhar no verso das nossas frases.


Não conheceremos outra vertigem como a das flores que guardámos para sonos posteriores.


Faltou-nos rasgar o dia a partir de onde nos sentamos, faltou-nos encontrar um espaço de inocência para os nossos olhares órfãos, e volto a referir que o sótão era quadrado como em todos os telhados triangulares, pois até o pensamento, tendo duas águas diante do mundo, vive num espaço com três eixos. Na geometria das nossas tardes, pergunto-me se algum dia nos encontrámos numa das películas mudas com que as cinzas nos presenteavam. Mas continuo a sentir aquele mesmo arrepio que me dava a tua presença e as tuas palavras gesticuladas de novos nascimentos. Inocência. Chuva por entre as mãos. Todos os dias eram domingo no nosso lugar sem tempo.


Diziam-nos que se tivéssemos asas seríamos capazes de voar. Seríamos donos da salvação, grávidos de um desejo impronunciável mas puro, tão puro que só a chuva era capaz de concretizar. Porém, as asas não apareceram a tempo para as fotografias, e assim continuámos a servir-nos das harpas para dizer o que ainda não era poema em nós, aquilo que era já fogo mas ainda não sangue. Tudo o que nós éramos para além das sombras. Antes do embate.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Incêndios


Olho-te.

No teu olhar, o incêndio. A revolta. A batalha. A explosão, como aquela explosão do começo. Como o rebentamento das águas no fim. O parto. A primeira morte de todas as coisas.

Vejo-me totalmente invadido e tomado sempre que te aproximas. Das ruínas, dizem, nascerá uma nova cidade com praças, templos e assembleias. No teatro, estará em cena a mesma história, com as mesmas máscaras. Mas desta vez será diferente, porque no final serás tu o meu assassino e eu o teu amante. E as máscaras quebrar-se-ão assim que nós nos abraçarmos.

Parece-me que não existirão árvores nessa cidade. É normal. O nosso destino é habitarmos longe do nosso lar. Promete-me apenas que não te esquecerás de ir visitando o velho sobreiro para receber novas instruções junto às raízes.

Depois, sim, retornarás e sitiarás uma vez mais a cidade. Junto às muralhas, abrirás os braços a toda a amplitude, e ao dizeres "amo-te" todas as criaturas e edificações num raio de dez mil pés serão abaladas e sacrificadas ao sol do meio-dia.

Não te esqueças de me resgatar do fio das palavras.

É um fio de cabelo novo, esse que vejo no canto dos teus olhos?

Olho-te uma vez mais. Findo o incêndio, levantar-me-ei do chão, e de rosto queimado e sujo ousarei tocar-te de mãos nuas. Serei teu, finalmente. Desde o começo.

Sísifo


Agora que estás diante de mim, apetece-me segurar as tuas mãos, olhá-las demoradamente, percorrer cada sulco e cada linha que estiver marcada na tua pele. Quem sabe se assim não alcanço mais rapidamente a tua alma pelo atalho do sangue?... Sei perfeitamente que o coração só pode seguir um único caminho, aquele que os próprios limites do corpo traçam, e que no entanto parece querer sempre transbordar a cada invasão, a cada corte que o amor (ou o medo, consubstancial à paixão) deixa na memória. Saber disso é ter a ilusão de tudo controlar, até mesmo os teus passos, mesmo que no fundo tudo acabe por escorrer como areia pelos intervalos da matéria. Sinto os teus dedos, o calor dos teus dedos, e de repente parece que não sou mais eu quem os segura, mas sim tu que me apertas e por vezes sufocas, e das minhas mãos passas a cercar o meu pescoço, a minha cabeça, todo o meu corpo submerso nas sombras. Ao mesmo tempo que me assusto, deixo-me levar, na esperança de que deste casulo que formamos nasça uma alma nova, um novo ser com asas de fogo, ou mesmo uma borboleta de que cuidaremos com ternura como se ela fosse livre e eterna como a fénix.
Mas a fénix, meu amor, era um mito bárbaro de palavras assassinas, não sabias?
Ainda me pergunto o que me queres dizer com esse olhar que usas para me percorrer, desarmar, arrebatar. Todos os oráculos me diziam que olhar demoradamente para ti me traria a morte rápida, mas como em todas as tragédias preferi fazer-me peregrino errante para fugir aos deuses. Os beijos que eles trocam entre si são paródias daqueles que nós deixámos de saborear. Tentei beber das águas daquela fonte que secretamente abasteceste quando sonhaste pela primeira vez, à espera que de novo surgisses ao meu lado. Talvez me devesse sujeitar à flagelação que os homens sábios tanto recomendam para afastar todos os feitiços que nos mancham, mas como sempre preferi acordar e retornar aos lugares onde fui clandestino e alegremente criminoso. Eras meu. Não eras meu. Foste. Ainda és. Desde que as palavras são palavras e assim se fazem pesar na mente, desde que o mundo primitivo foi desfeito e depois reconstruído com símbolos em apenas três dias, tenho-te procurado sem cessar.
Sabes, é que sempre te conheci com muitos nomes e muitas faces, de tal forma que por vezes poderia parecer que eu amava o mundo inteiro. Mas era mentira. O mundo é-me indiferente porque não o conheço. Se o conhecesse, diria que sinto saudades dele. Só que sabes bem que nunca pertenci aqui e que tu próprio tens uma origem diferente da da maioria dos seres. No máximo dos máximos, pedi emprestada a roupa da terra e do vento para conseguir aderir ao chão como os homens, embora em constante movimento como as aves. Nada mais conheço. Aquilo que somos é aquilo que não temos mas desejamos, pois de contrário não desejaríamos o que não temos.
Não obstante o facto de desejarmos aquilo que já somos, como é evidente.
Nós somos, meu amor. Por isso é que a tua face ainda me parece tão estranha e no entanto tão familiar, tão próxima, tão minha. Desde que partiste que a minha carreira terrena tem consistido em buscar-te uma vez mais. Bem que poderia arrumar os meus utensílios de mago, apagar a chama que adquiri por grande preço e ir para outra cidade. Mas nós já existíamos antes desta vida, antes deste Universo, antes do beijo primordial com que tudo foi criado. Não negues. O silêncio é indesmentível. Já te tinham ensinado isso nas tuas aulas de abismo. Só preciso que me respondas uma vez mais, antes que a noite se faça dia uma vez mais e o tempo volte a ser dilatado:
Para qual das montanhas queres que me dirija desta vez?

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Cosmologia


Por vezes o silêncio consegue ser mais perturbador do que todos os ruídos e todos os clamores da multidão. Sempre que nos isolamos, sempre que mergulhamos nos nossos muitos lagos interiores onde o luar cria um terceiro reflexo da luz, tudo se torna possível. Tudo se faz criação. O amor e o seu gémeo ódio, ou apenas a indiferença, a coragem e o medo, a verdade e a mentira e as muitas dúvidas que nos fazem caminhar, tudo isso são várias faces de uma mesma realidade. A luz e as trevas acompanham-nos e ultrapassam-nos desde o início dos tempos. Quando por fim o fogo e o gelo se beijaram mutuamente e todas as divindades e criaturas surgiram, também as tentações ganharam forma nos lugares mais secretos da nossa mente. São elas as forças que nos provocam, que nos espicaçam, que nos ferem até à medula. Mas também elas nos renovam a cada incêndio, num constante renascer das cinzas. São as sereias diante das quais não devemos ficar surdos. Elas agitam as águas do nosso silêncio, e, a cada revisitação daquilo que sobrou de nós após o desejo e antes da luta, esse mesmo silêncio parece adentrar-se e enraizar-se mais e mais, até nos voltar a ligar à nascente. Numa das mãos a doçura, na outra a raiva. No coração de todas as coisas, este diálogo em tom de conflito continua a fazer girar o nosso Universo. Do debate nasce a luz. Do dilema nasce a liberdade. Do confronto nasce a paz. Do cruzamento de olhares nasce o amor. De olhos fechados. Numa total entrega ao que de mais profundo nos une.