segunda-feira, 14 de maio de 2007

Reincidente


Desenterrara um antigo poema de um daqueles cadernos onde antes descontava o silêncio e adiava o esquecimento dos seus dias. Curiosamente, desde que tinha começado a conviver com as palavras como uma outra pele que vestir nas noites de frio, quatro anos antes, nem as suas emoções se tinham esquecido dele. Aquele título. "Solidão". Naquele momento conseguiu encontrar atenção suficiente para captar a música que tocava na rádio. Pensava ele que devia ser útil reparar nesses pormenores, afinal as coincidências escondem-se onde menos esperamos e também o que elas nos revelam pode ser totalmente inesperado. "Je cours, je cours", dizia o vocalista... Correr para onde? Paris tão longe e com a cidade lendária também as luzes e mitos do coração se tinham desvanecido. Correr para onde?...


Anos antes aquele poema tinha sido escrito ao som de uma ária qualquer que desconhecia, mas que ouvira na altura porque com as lágrimas descobria outros sons e não lhe restara paciência para vasculhar as ondas hertzianas em busca de algo diferente. Haveria alguma relação entre ambas as vozes que ecoavam em cantos distintos da sua mente? Coincidências, pois claro. Entre cada um desses dois pontos da memória traçava-se uma linha oblíqua pela qual tantas pessoas haviam passado (ou será que era essa linha que se estreitava e decapitava os olhares que se cruzaram?), de tal forma que a meio caminho tinha perdido a noção da geometria, da simetria das coisas. A noção do céu e da terra. O inferno, esse, era um gesto furtivo com nome de gente que por vezes acendia para se lembrar do sabor da noite.


Lembrava-se também daquele odor, algures entre o hálito a álcool e a loção de barbear, que aquele estranho fizera entranhar-se no ar numa daquelas noites de chamas acesas e que ao beijá-lo lhe tinha comunicado toda a sua embriaguez e todos os seus segredos. Fazia-lhe falta o toque, o abraço, o colo até. Tinha amado aquele homem, sem dúvida. E daí, talvez pudesse colocar isso em causa. Não lhe era líquido se o que procurava era companhia ou tão-somente salvação. E os Messias, como ele bem sabia, não eram reais. Todas as doutrinas e restantes mensagens de pedra davam conta desse facto. Nem mesmo a voz do coração fazia lei por aqueles dias. Ia ter à janela, ficava a observar a cidade que era agora a sua, enquanto os caixotes que trouxera nas mudanças se eternizavam atrás dele. Tanta gente. Tantos olhares. As ruas cinzentas, a tarde que caía depressa sobre os edifícios, as praças, as estátuas. No fundo, à medida que o Sol deixava um rasto róseo no seu rosto, também ele era mais uma estátua a fingir que visitava as nuvens. Estender a mão naquele instante podia chamar a atenção de alguém perdido, alguém com palavras novas. Talvez tudo o que recebesse em troca fosse um breve olhar, turismo dos desejos, e acabaria obrigado a abandonar o sonho com as mãos vazias.


Olhou então de novo para dentro do quarto. Agora que a estação era outra, não teria trazido bagagem a mais?

1 comentário:

Anónimo disse...

Excepcionalmente, não deixei para amanhã o que podia fazer hoje. E vim visitar o teu blog. Lindíssimo! A cor... as fotografias... a música... todo o visual é de requintadíssimo bom gosto.
Quanto às palavras... não tive ainda tempo de as ler atentamente (fá-lo-ei logo). Mas, pelo pouco que li, apreciei a prosa mesclada de poesia. E a escrita perfeita, que tanto aprecio e é cada vez mais rara.
Senti que estava perante alguém especial. Não me enganei.
Um abraço.