terça-feira, 8 de maio de 2007

Encontro II


"Obrigado".


Resposta lacónica, a tua. Por instantes pensei que estivesses desagradado com o facto de eu ter voltado para a mesa com o nosso pedido. Talvez me quisesses longe e eu fosse um fardo para ti. De qualquer modo, notei uma certa distância no teu olhar que tanto me intrigou como me atraiu. Porém, a avaliar pelo teu sorriso, parece-me que posso estar à vontade. Não deixa de ser curiosa a forma como nós os dois estamos ainda algo apreensivos, apesar de visivelmente nenhum de nós ser um novato por estas andanças. Eu mesmo estou surpreso por ainda continuar com algumas reservas em situações como esta, mesmo após quatro anos de viagens pela noite, entre vários rostos e corpos. Talvez eu tenha chegado algo tarde a este mundo, e por isso mesmo algumas situações, pessoas, gestos, códigos, contenham ainda uma certa estranheza para mim. Não trocámos ainda muitas palavras, mas tenho a impressão que tu começaste a caminhada há mais algum tempo. Será possivelmente contigo que eu encontrarei algumas respostas. Mais umas quantas.


É complicado o mundo visto de onde estou. Daqui a pouco até mesmo a tua expressão será difícil de gerir quando eu conseguir encontrar palavras para as muitas perguntas que terás aí guardadas dentro de ti. Nem me precisas de pedir: "Fala-me de ti..." Eu consigo adivinhar o que pode ir na tua mente neste momento. Também eu já vi muito, e o que não sei, consigo imaginar. Estava eu naquele balcão, a ver tanta gente a passar, absorto nos meus pensamentos, ou por vezes cessava todo o pensamento e ficava apenas suspenso entre o meu corpo e o copo, a tentar encontrar um momento de paz mesmo no meio da maior confusão, como em muitas outras noites. De quando em vez estendia as mãos em cima da mesa, ou esfregava-as uma na outra sem motivo nenhum, e lembrava-me do dia em que cheguei a casa sem a minha aliança posta. Na época disse à minha mulher que a tinha perdido durante o dia, ao lavar as mãos, ou de um outro modo que inadvertidamente fizesse deslizar o anel para dentro de uma sarjeta qualquer, nem me recordo. Na verdade eu tinha-me limitado a retirar discretamente a aliança e a arrumá-la para sempre numa gaveta do escritório até nova ordem, da mesma forma que aquilo que ela representava tinha perdido todo o significado para mim. O facto de ela ter aceite prontamente a desculpa sem demais questionamentos talvez indicasse que para o lado dela as coisas tinham igualmente resvalado, algures, lá atrás, não importa quando nem onde, se calhar tudo era para ter acontecido assim, desse por onde desse. Porém, o facto de por fora parecer um homem igual a todos os outros não me livra de ter que te contar tudo. Ou pelo menos aquilo que eu conseguir dizer por agora. Não me peças muito mais, para mim tudo já é demasiado complexo para me preocupar com razões que nem eu conheço. Preciso da chave para o paraíso, por acaso tu traze-la contigo?


Desta vez as aparências não me servirão de refúgio.


(E ao fundo, a sair pelas colunas de som, aquela velha profecia que me visitou tantas vezes e ainda hoje se cumpre: "Tu estás só e eu mais só estou...")


Seja como for, hoje tenho duas filhas pequenas, e até nem me considero mau pai, apesar das noites longas no trabalho ou noutro lugar qualquer. Bem sei que a concepção delas não aconteceu numa relação de profundo amor, como todos os filmes nos prometiam, até mesmo a mim, quando era mais jovem e tudo tinha o potencial de ser passageiro, até mesmo aquilo que eu sentia podia ser passageiro, mas não era possível naquela altura, não era e pronto. Mas creio que não estarei a mentir se eu disser que algo naquele instante ainda era real. Nasceram duas crianças, são parte de mim, existem, dei-lhes colo, o que mais podia pedir? Não será isto também um pedaço de verdade? No fundo, espero que um dia elas sejam capazes de compreender quando tudo for claro. Nem eu consigo perceber-me inteiramente, cada dia é uma enorme incógnita, entre segredos, chamadas ao telemóvel feitas longe dos olhares de todos, saídas enigmáticas, momentos de fronteira onde tudo se joga, a minha vida, o meu passado, o meu porvir.


O teu silêncio. Peço perdão por esse teu sonho a mais.


E de repente tentas dizer-me: "Bem... Sabes que nós só podemos ser amigos... E..." A resposta esperada. Compreendo. Sabes, há pouco, quando reparei em ti e nas tuas várias tentativas para cruzar o teu olhar com o meu, senti uma certa esperança dentro de mim. Não me perguntes exactamente o que é que eu esperava, apenas havia algo que me impulsionava para a frente. Neste ponto da minha vida, tornaram-se raras as ocasiões em que algo realmente me entusiasma. Obviamente que não foste o primeiro, e sim, já encontrei várias pessoas que me fizeram sentir-me bem num momento ou outro. Não sei se ainda procuro o amor. Essa é uma palavra tão relativa, são tantos os factores, a química, a companhia, as palavras, o toque, a simples presença sobreposta ao tempo... Não. Não te sei responder. Sei apenas que neste instante, que é tudo o que me é dado ver, tu apareceste e interessas-me. Isso basta-me. Para ti, provavelmente não será o suficiente, mas tu mesmo já terás passado pela mesma situação que eu, a de te interessares por alguém apesar de teres feito as tuas promessas a outra pessoa. Acontece a todos nós. Não me negues. Nem precisas. Deixa-me só aproximar-me de ti. Já te disse que me basta a tua presença. O teu olhar. As tuas mãos. O teu cheiro. O teu rosto carinhoso e aberto enquanto te digo tudo isto ao ouvido.


"Sim, vamos", acabo por te dizer. Não sei o que seremos depois desta noite. É possível que eu te volte a ligar, porque não? Quem sabe? Se calhar já me terás esquecido e procurado outra pessoa, alguém que te possa dar aquilo que não consegues encontrar em mim, ou então o mundo será tão pequeno que um amigo teu me conheça também e te diga uma série de coisas que te desagradem e que eu nunca chegarei a saber, por melhor que mas reproduzas mais tarde. Um dia, enfim, poderemos passar um ou outro fim-de-semana juntos, encontrar-nos, tomar um simples café, sim, como amigos, como insistes em me repetir apesar de daqui a pouco estarmos os dois no teu quarto. Só posso imaginar aquilo que consegues ouvir quando me tocas.


Esta noite, porém, enquanto nos abraçarmos, preciso que me respondas a tudo o que eu não te contei. Tudo o que me escapa das mãos em cada segundo.

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