sábado, 22 de setembro de 2007

Possessão


nada trouxe ao poema quando o fui buscar à estação
só sei que quando o entrevi zangou-se
sentaram-nos a um canto com um tabuleiro de xadrez
entre nós e as decisões
e assim ficámos durante eras
a debater impaciências

alguns séculos depois
estávamos eu e o poema
sendo eu outro poeta que não o de ontem
de repente surgiu a fome
e o poema disse-me que deus estava na mesa
note-se que ele não estava
à mesa
disseram-me apenas que tinha sido apanhado
fresco de manhã e por isso
por alguma razão
o tempo estava a passar mais depressa
e eu preocupado por poder perder o noticiário
não só comunguei como me esqueci de tudo
porém vim a saber que deixara de haver jornalistas
deus esquecera-se de lhes anunciar o fim do mundo
em primeira mão
decidiram então mudar-se para um segundo ramo
e pregar para outra freguesia
e sem televisão nem rádio decidi eu mesmo ir ao engate

eu nunca vou ao engate quando passa a novela
fingir
sai mais barato e é mais doce
reduz a acidez estomacal

o poema consentiu
na nossa ligação muito aberta
porém ao ir em busca de um copo descobri
que o poema era dono de todos os bares e tabernas
pareceu-me que até na discoteca vi um segurança com cara de poema
conhecia o segredo de contar todas as palavras com o punho cerrado
e portanto além de ser suspeito de traição
ainda me arrisquei a cair de quatro
quatro horas dizia o relógio
e ainda não havia deus nenhum disponível
seria da minha falta de troco
ou da minha queda para os esgotos?

nada trouxe ao poema
no final da noite simplesmente reencontrámo-nos
tomámos um último chá porque o sono era um luxo
e adormecemos
creio que lhe fez falta ter um jornal para afogar as mágoas
digo
para enrolar a língua
que vai sempre para o lixo de manhã cedo a cada dia
como os deuses que são pescados

esqueci-me de lhe perguntar
se ele ia ver passar o rio à tarde
talvez falemos sobre o assunto durante o almoço
encomendámos de véspera vários demónios de lenta digestão
e se efectivamente o poema sair pela porta
em direcção ao caudal que encheu dentro do prazo
levarei um ferro para engomar o lençol freático
e outro para despedaçar o crânio de quem parar ao redor

não me neguem
não existem espectadores puramente passivos

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