segunda-feira, 7 de maio de 2007

Encontro


"Aqui tens. Foi isto o que pediste, não foi?"


Sim, foi. Agora que voltas para a nossa mesa com as bebidas, percebo que também estava à espera das tuas palavras. Como em todos os sábados à noite em que procuro esta mesa, ou outra qualquer em caso de emergência, hoje vim cá porque queria ouvir as mesmas palavras, à falta de melhor repertório. Quem sabe quantas vezes não as repetiste a outras tantas pessoas, se calhar até nesta mesa, numa noite em que eu cá não estava (possivelmente porque eu estaria com outro alguém)?



Esta mesma mesa, as pessoas a dançarem em frente, uma música barata qualquer que não vem ao caso (afinal todas as canções soam ao mesmo quando estamos sós), e em cada noite um rosto diferente. Hoje eras tu quem me acenava do balcão. Sei que eram muitos os olhares postos em ti, e por momentos pensei que estava enganado, mas afinal era comigo que o teu olhar tratava de silêncio. Seja como for, é quase certo que os outros homens te tenham esquecido depressa. Abstraí-me do que me rodeava quando vieste ter comigo, mas sei que no meio da solidão deixamos de escolher pessoas e para o coração o mundo não é mais do que uma colecção de fragmentos. Mesmo que alguém mais aqui te continue a desejar, se calhar mais até do que eu, sossego-me com a noção de que um dia ele também terá que aprender. O quê, nem eu sei. Tudo o que me resta depois de tantos anos é a indiferença. Hoje és tu, poderia ser outro homem qualquer, o que interessa é manter viva a ilusão. Talvez fosse melhor eu nunca ter aprendido.


"Estás tão calado...", dizes-me tu. "Tenho andado um pouco cansado, é só", tento responder à pressa. E de novo pego na tua mão, a tentar assegurar-me de que não te vais embora. Sei que amanhã tu sairás pela porta do quarto na mesma e depois seremos pouco mais do que estranhos, mas a loucura leva-me a acreditar em ti. É tão conveniente acreditar em ti, deixar-me levar, ser dominado... E rio-me, rio-me como se houvesse uma ironia tão fina por detrás de todas as coisas, e a consciência de tudo isso me esmagasse... Tu, por teu lado, estás encantado porque julgas que o meu sorriso se deve à tua presença, e isso faz-te sentir-te especial no momento. Também tu me fazes sentir-me bem. Olhas fixamente para mim, começas lentamente a aproximar-te para estarmos mais perto um do outro e a conversa diminui cada vez mais de volume. Daqui a segundos estaremos já a sussurrar ao ouvido um do outro, e a partir do momento em que deixarmos de ouvir a balbúrdia lá ao fundo nunca mais teremos um ponto de retorno. Mas nunca terás a honra de me teres conquistado. Quem me venceu fui eu mesmo. Fica descansado. Terás ajuda no meu naufrágio.


Volto por segundos a levar o copo à boca, talvez para sossegar mais rapidamente o ruído de um mundo em ebulição. Tenho pressa. Digo-te: "gostava tanto que este momento nunca passasse", e apesar disso continuo sem saber onde estou. Se me desse ao trabalho de pensar suficientemente no assunto, talvez te deixasse neste preciso momento. Talvez acabasse por voltar cá na próxima semana e tudo se repetisse, com a diferença que da próxima vez eu já estaria mais anestesiado e os meus pensamentos não me doessem tanto. Preciso das tuas palavras.


"Não achas que é um sinal o facto de nos termos encontrado aqui, hoje?..."


Olho para o copo na mesa enquanto ouço essa tua frase proverbial, tão gasta mas tão eficaz, tal como o teu corpo, decerto, e tento esboçar uma resposta adequada. No dia em que alguém decidiu que a água não bastava para matar a nossa sede, ninguém conseguiu prever o que faríamos quando os aditivos a mais nos soubessem a deserto no final. Obrigado por criares tantas necessidades artificiais e fictícias dentro de mim. Obrigado pelo beijo insinuado que amanhã será apenas um cartaz publicitário na minha mente a dar-me conta de mais uma ilusão que adquiri. Obrigado, porque daqui a dias, quando me quiseres de novo, numa das tuas horas vagas, dir-me-ás para me convencer: "mas olha que eu até te revelei o meu verdadeiro nome, e isso não é comum na primeira noite", como se me tivesses feito o maior dos favores.


E o que fazemos quando a primeira ilusão não nos bastou? Eu, até hoje, tenho recaído vezes sem conta. Pode ser que da próxima vez seja verdade. Pode ser que haja algo real no meio desta gente toda além desta mesa que já conhece o suor das minhas mãos e o calor de um coração a bater depressa, enfim as expectativas que os homens que vou conhecendo a cada noite me fazem questão de diminuir. Pode ser que eu de facto seja alguém especial. Tu também, se calhar. Não será esta noite que eu conseguirei descobrir isso, porque já há muito que separei da minha alma as carícias e olhares que ainda vou trocando. Por isso é que tu não me vais conhecer verdadeiramente para além dos destroços que eu te deixar ver.


Por isso é que, para além desta noite, seremos sempre dois estranhos e eu mesmo continuarei a surpreender-me com o homem que aparecer diante do espelho. Seremos eternos desconhecidos unidos pelas mais complexas artes do mercado. Mas, curiosamente, quando te olho nos olhos consigo perceber que, talvez neste momento, estejas a ser sincero. É um defeito de fabrico que conseguirás resolver daqui a uns anos. Ou meses. Ou talvez consigas ser completamente insensível (ao menos nisso poderás consolar-te com a ideia de que és perfeito) depois de apenas mais alguns encontros. Eu nunca te direi nada acerca disso. Mas sei que depressa te encantarás com outro olhar silencioso, outro número de telefone, outro aroma, outro quarto, com a mesma intensidade com que hoje te dirigiste a mim em vez de outra pessoa qualquer. Entretanto, gabo-te o teu discurso de publicitário. É por me dominares por esta noite (já houve tempos em que eu conseguia deixar-me perder durante muito tempo, mas isso era quando eu ainda tinha nome) que me encosto mais a ti e peço a conta.


"Vamos?", digo-te eu.


Preciso que me sirvas as tuas palavras. Nada do que me ofereceres depois será mais real e sanguíneo do que a tua voz.

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