sábado, 26 de maio de 2007

Mensagem


Sete da manhã. Cheguei agora à cama. Incomoda-me tanto este silêncio, esta dor seca, muda, clandestina, esta aridez que se sente até na boca. Língua deserta de luares vermelhos e luzes arenosas. Talvez fugir, talvez embriagar-me, perder-me, afinal talvez o silêncio seja um mar que se oferece como berço para nele mergulharmos e ressurgirmos com nova forma, ou talvez a panaceia seja uma válvula de vidro onde se retêm todas as demoras e todos os resquícios de bebedeiras antigas, corpos, relances, nem os nomes importavam, só o toque, a sugestão, a pedra filosofal desenhada no calor. Talvez entrar em acordo com alguma força que me corte o fio e faça verter sangue das veias da memória. Talvez... Sei apenas da dor. A tristeza é um efeito colateral que não estava previsto. Da tua ausência esperava apenas guardar a ressaca. Agora como em tantos outros momentos, "comme on a pas le choix, il nous reste le coeur"... E se o coração nos faltar, e se ele se cansar de repente?

- E eu, escolhi-te?


Agora, neste instante, enquanto amanhece, recomeçam os murmúrios, o choro fino e arrastado pelos corredores, as mesmas e constantes rezas estúpidas a um Deus que não está, tem mais que fazer ou simplesmente não é! Agradecia-te que não me tivesses demolido aquela infância em que eu ainda acreditava em altares e sacrifícios e esperas. Confiança. Ascensão. Ou mero alheamento. Recordas-te? Hoje, o prenúncio da discussão, a estagnação doentia, até mesmo o ar tresanda a pessoas mortas por dentro, as palavras que se ouvem trespassam-nos, dizer "olá" ou "bom dia" (ou outras mentiras em que incorremos por vício) é puxar de uma faca longa. Manicómio ou lar, afinal poucas letras separam o riso da loucura...


E gritar!... Ter na boca uma janela aberta de onde se precipitam os pensamentos e tudo se reduz a minúsculos elementos de uma nova terra já estéril, carbono gasto como os gestos já de si oxidados. Gritar. Porque a manhã, o despertar, a lucidez é frágil como um corpo totalmente exposto, violado já em potência, à espera da sua derradeira deturpação.


E como, como gritar mais, será que a cidade não nos ouve, será que os edifícios sempre eram de betão e não sabíamos? E como pensar seja o que for, agora que levamos as mãos à cabeça e a nossa loucura é uma estátua a mais, afinal o betão comunica-se e tem voz, e grita por toda a cidade: "olhem, parem, existe dor, as aves fogem, não vêm que o solstício se passou para o lado do inimigo?" Gritar porque algo faz falta, porque de noite os faróis são apenas a sombra dos nossos passos desencontrados, varandas abertas, vento e mais vento, uma torre mascarada de luz, e mesmo de dia tudo o que temos é uma única estrela na mesma cidade inerte. De dia só uma estrela nos pede que avancemos e accionemos a alavanca, para que tudo seja fogo, pura chama, pura combustão, pura cobardia, tempo desfeito, tempo opressor, tempo fora de tempo, ou seja, um Deus de algibeira, que é o mesmo que dizer:


- Acabou-se, está consumado!

Sem comentários: