terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Sísifo


Agora que estás diante de mim, apetece-me segurar as tuas mãos, olhá-las demoradamente, percorrer cada sulco e cada linha que estiver marcada na tua pele. Quem sabe se assim não alcanço mais rapidamente a tua alma pelo atalho do sangue?... Sei perfeitamente que o coração só pode seguir um único caminho, aquele que os próprios limites do corpo traçam, e que no entanto parece querer sempre transbordar a cada invasão, a cada corte que o amor (ou o medo, consubstancial à paixão) deixa na memória. Saber disso é ter a ilusão de tudo controlar, até mesmo os teus passos, mesmo que no fundo tudo acabe por escorrer como areia pelos intervalos da matéria. Sinto os teus dedos, o calor dos teus dedos, e de repente parece que não sou mais eu quem os segura, mas sim tu que me apertas e por vezes sufocas, e das minhas mãos passas a cercar o meu pescoço, a minha cabeça, todo o meu corpo submerso nas sombras. Ao mesmo tempo que me assusto, deixo-me levar, na esperança de que deste casulo que formamos nasça uma alma nova, um novo ser com asas de fogo, ou mesmo uma borboleta de que cuidaremos com ternura como se ela fosse livre e eterna como a fénix.
Mas a fénix, meu amor, era um mito bárbaro de palavras assassinas, não sabias?
Ainda me pergunto o que me queres dizer com esse olhar que usas para me percorrer, desarmar, arrebatar. Todos os oráculos me diziam que olhar demoradamente para ti me traria a morte rápida, mas como em todas as tragédias preferi fazer-me peregrino errante para fugir aos deuses. Os beijos que eles trocam entre si são paródias daqueles que nós deixámos de saborear. Tentei beber das águas daquela fonte que secretamente abasteceste quando sonhaste pela primeira vez, à espera que de novo surgisses ao meu lado. Talvez me devesse sujeitar à flagelação que os homens sábios tanto recomendam para afastar todos os feitiços que nos mancham, mas como sempre preferi acordar e retornar aos lugares onde fui clandestino e alegremente criminoso. Eras meu. Não eras meu. Foste. Ainda és. Desde que as palavras são palavras e assim se fazem pesar na mente, desde que o mundo primitivo foi desfeito e depois reconstruído com símbolos em apenas três dias, tenho-te procurado sem cessar.
Sabes, é que sempre te conheci com muitos nomes e muitas faces, de tal forma que por vezes poderia parecer que eu amava o mundo inteiro. Mas era mentira. O mundo é-me indiferente porque não o conheço. Se o conhecesse, diria que sinto saudades dele. Só que sabes bem que nunca pertenci aqui e que tu próprio tens uma origem diferente da da maioria dos seres. No máximo dos máximos, pedi emprestada a roupa da terra e do vento para conseguir aderir ao chão como os homens, embora em constante movimento como as aves. Nada mais conheço. Aquilo que somos é aquilo que não temos mas desejamos, pois de contrário não desejaríamos o que não temos.
Não obstante o facto de desejarmos aquilo que já somos, como é evidente.
Nós somos, meu amor. Por isso é que a tua face ainda me parece tão estranha e no entanto tão familiar, tão próxima, tão minha. Desde que partiste que a minha carreira terrena tem consistido em buscar-te uma vez mais. Bem que poderia arrumar os meus utensílios de mago, apagar a chama que adquiri por grande preço e ir para outra cidade. Mas nós já existíamos antes desta vida, antes deste Universo, antes do beijo primordial com que tudo foi criado. Não negues. O silêncio é indesmentível. Já te tinham ensinado isso nas tuas aulas de abismo. Só preciso que me respondas uma vez mais, antes que a noite se faça dia uma vez mais e o tempo volte a ser dilatado:
Para qual das montanhas queres que me dirija desta vez?

1 comentário:

Anónimo disse...

Não tenho palavras para utilizar a este tão lindo post que escreveste, profundo, muito sentido cheio de uma cadência fantástica. Trabalhas muito bem as palavras e fazes passar a mensagem de um modo diferente dos habituais. Recursos estilísticos e formas e cadenciar o real. Lindo mesmo, à mistura anelas uma dose de filosofia, deixando-me a pensar e cada vez mais preso aos teus escritos.
És uma pessoa linda, um amigo maravilhoso que guardo no coração com todas as medidas. Continua a escrever, quero ler-te sempre. És um lindo, muito lindo.
Abraço grande e beijinhos
13.02.2007