quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Digressão de um ilusionista


o poema saído das mãos do criador

e quem sabe o que dirá o amanhã
porque o dia é claro e a noite
sabe-se lá o que nos traz nas nossas costas
e se eu pudesse eu aniquilaria todos os poemas
porque só o meu é real
apenas porque eu o digo
e só não digo o que não sei porque no fundo não existo
e ainda nem aprendi a ser
quem sabe nem eu conheço o que sai das minhas mãos
a minha obra é órfã antes mesmo de nascer
fatalmente
o poema ficará sem autor nem mestre nem ouvinte no final dos tempos
para quê se nunca mais haverá poentes
no lugar onde eu pousarei a cabeça
apenas a folha e o texto e o café e as pessoas e as ruas e
todas as cidades onde nunca vivi mas onde sempre deixei um rasto
como em qualquer cama sem redenção
para quê ter amigos ou família
se as sombras caminham sempre sós
e todas apanham o mesmo barco para casa no final do dia
cansadas do trabalho
não me negues nem apontes as pessoas ou as pedras da calçada
nada me converte nada me ensina nada me comove
a não ser quando me tocas
e aí as minhas teorias acabam sempre por ser desmentidas
afinal é essa a tua missão
que faria eu sem ti
sem a tua rapidez dos pianos
há tantas cordas com que amarramos a nossa pele
não me prendas às palavras pré-construídas
não quero
nem posso
dar-me ao luxo de continuar a falar-te
não posso
não tenho tempo
e o relógio que me ofereceste no ano passado continua a parar
por breves instantes
na mesma hora estúpida do dia
seis e vinte e cinco
não sei
não sei deve haver alguma razão para estar aqui
possivelmente receio
morrer do mesmo modo que as palavras me saem sempre
de modo repetitivo
dia sim dia não
o mundo pára nos meus dedos
nomeadamente entre o primeiro advérbio e os planos para o fim de ano
havia de ser bonito conhecer-te
talvez um dia quando eu for aquele célebre poeta
que toda a gente conhece do desfecho de um livro
tal como um amigo que se encontra num bar
à média luz todas as faces são ilusórias
o teu corpo e o meu destino
tudo o que toco com o poema desfaz-se
pois assim me descubro homem e a incerteza e o caminho e a paragem
tento parar há um autocarro que parte daqui a nada
e nem tenho um poema completo para seguir viagem
porquê
pergunto eu porquê
creio que terei a resposta quando deixar o assunto para outro dia
e inevitavelmente vir a encontrar um anúncio nas páginas centrais do jornal
que não anuncia calor mas apenas a vontade de estar sempre imerso no vazio
porquê
o verso sai-me sempre igual ao dia de ontem
e ao dia antes desse
talvez se não tivesse travões
talvez se andasse sempre em sobressalto
como hoje
talvez se deixasse de falar entendesse alguma coisa
sobre uma única pessoa
bastava calar-me
não sei para que é que me olhas dessa forma
afinal para que é que passamos a vida a dizer que tudo muda
quando me estás a dizer exactamente o mesmo apenas de outra forma
daí a minha falta de sono e a deriva dos continentes
o que é o mesmo que dizer os meus sonhos ou
aquelas pérolas perdidas de que as crianças se esquecem
quando aprendem a contar ou a ler ou a discutir política
talvez o poema se revele de outro modo quando eu crescer
ou quando envelhecer definitivamente até ao próximo parto
o facto é o que o poema saiu das mãos do criador e até hoje
nunca mais retornou
tudo isto me irrita e confunde
mas que fazer se a vontade das palavras não é a mesma que a nossa e
por mais que queira parar há algo que me prende ao poema
por mais que peça o divórcio nunca deixarei
nunca te deixarei
é possível que volvidos uns séculos eu volte aqui e diga
que me encontrei
mas até lá o poema continua em viagem
está atrasado
e ainda não voltou a casa

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