segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Intuição



falaste-me de inocência
àquelas horas era-me difícil compreender
as tuas palavras
as tuas
múltiplas formas de pegar na minha mão
de acariciar os meus dedos
de fazer quiromancia
e jogar com o silêncio para calar o futuro
disseste-me também que um dia
o passado se apagará
talvez o teu toque me demonstre essa arte
essa tentação no deserto
essa arquitectura paisagística
que empregas para me apresentar ruas amplas
daquelas que ninguém polui ao final da tarde
onde há crianças que nos levam pela mão
e onde
bom
onde ao que parece tu acabas de fechar as cortinas

recomeçar
sabes bem que não conheço muita gente
posso andar pela cidade
ouvir as pessoas inalar o fumo entrar no metro
mas pergunto
o que se esconde atrás dos rostos
apressados zangados que pensam no jantar
ou a quem vão confiar o corpo ao anoitecer?
diz-me
quem és tu e todos aqueles que me encontram
na esquina onde desenho pontos de fuga no meu casaco?
sabes bem
sou um animal que se perde caminhando à chuva
há vozes que me são estranhas
mesmo que eu as conheça desde a mesa de cabeceira
ou de um recanto qualquer da minha boca

que queres de mim
se o lugar onde me serves as tuas mãos
não tem nenhum luar que o sustenha?
que queres de mim?
sou alguém que sobretudo sente
sento-me no chão de terra sob o sol
ou tento acercar-me de ti
e tudo o que te consigo oferecer
são pedaços de pele que guardei com os anos
embrulhei com eles muitas lágrimas
com eles esperei que um sorriso nascesse ao virar da hora
estas árvores
quem me dera que nos deixassem sempre ver a noite
parecem-me ter sido feitas unicamente para que tivessem ramos
e na sua nudez de inverno fossem molduras do tempo
mas para isso temos janelas
não é?

não
não largues a minha mão
afinal não consigo ainda adormecer
pelo menos não sozinho
existe uma longa estrada para percorrer
entende por favor
é de noite e tenho medo
não consigo tecer outras palavras quando me falta fé
dantes tinha um deus que me abraçava
e hoje?
hoje existe uma longa estrada para percorrer
não me digas que me repito
não me digas
sofá
cama
casa

lar
encanto-me sempre quando fazes isso
esse sorriso
creio eu que sorris
à média-luz todas as expressões são belas
encanto-me
céus
existe outra forma de pedir colo
é tão raro que alguma coisa ainda exista
e quando balbucio certas palavras
quero-te
amo-te
preciso do teu calor
espero apenas que as ouças no teu sono
é quase certo que um dia adormeças
insistes em negar-me essa tua necessidade
mas eu
eu não consigo adormecer
não te esqueças que sou um animal que apenas dorme à chuva

se numa hora alta dos meus devaneios
me visitares
ou voltares a pegar na minha mão
aceita o meu convite
e vem comigo viver a explosão com que digo à cidade
que tenho fome
cidade
sinto raiva
tenho saudades
fazes-me falta
preciso deste modo de me desmembrar
só assim consigo sentir que certas gotas de pedra me invadem
nunca pensarias nisso se me pintasses uma aguarela
vem comigo
conversar com aquele que vem com o vento
chamemos-lhe sonho
as nuvens são fortes alucinogénios
quando nos abeiramos das varandas
vem comigo
preciso deste pedaço de sossego
a tua presença

que é como quem diz
o mundo
ou um pouco de carinho

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