segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Isto não é uma palavra.



Isto não é uma palavra.
E também não é a Palavra.
No princípio o Poeta estava de mãos vazias.
Havia muita gente e vozes e cidades e oceanos ao seu redor.
Um dia falou. E ao dizer o mundo nasceu como único deus do poema.
Disse-se como homem e construtor de pontes.
No dia em que encontrar a sua Voz, começará a ser o que sempre foi.
O Poeta será o Poema.

Feliz Natal para todos os que se deixam tentar pelas muitas vozes do mundo, que nada mais são que ecos de uma única Voz, o Ser, que espera no escuro, num silêncio de veludo.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Receituário


se eu falar muito devagar
talvez consiga suster o mundo nos meus lábios
certo é que deixarei certas palavras por dizer
uma manhã nebulosa de domingo em cada dedo
e o poema partirá das minhas mãos incompleto
um fio de intensa existência a escorrer desde os pulsos até ao chão

amo-te
não sei se te encontro hoje
amo-te
onde estão os espelhos onde ontem cortavas a luz?
amo-te
acolhe nos teus braços o meu dia
amo-te
não me escondas as paredes o ar a cidade
amo-te
é isto a despedida o desengano o engate?
amo-te
num segundo tudo ficará suspenso

seguro no meio das nossas miragens um pedaço de prata
não tenhas medo
não te farei mal
observa o reflexo da tua face nesta lâmina
brilhante
a inteireza da tua luz e da tua podridão encantam-me
gostaria de te prender nos meus braços
deixas-me?

quero-te
há demasiada gente que morre sem memória
quero-te
não temas o desvario o azar a obsessão
quero-te
trouxe-te algo para curar as tuas noites
quero-te
não quero que assines no fim
quero-te
não quero
quero-te
porque tinhas que engolir a estrada com todas as suas colisões?

hoje vários corpos foram encontrados
desconhecem-se as vítimas o seu passado o seu nome
porém várias veias pareciam ir na mesma direcção do desejo

olhares rubros má sorte
um anjo com rosto de cinzas

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

À parte


como explicar a uma criança a idade de uma árvore
ou outro mistério mais antigo que os mesmos anéis do seu cabelo?
o amor ou uma mancha na madeira
será uma nódoa ou um sinal do tempo?
quanto a mim
perdi a conta aos meus dias
sentei-me a contemplar as linhas das minhas mãos
e ao escutar outra criança ao lado
espelho contraponto miradouro as mesmas perguntas
o eco de um colo que se pede
de súbito acendeu-se uma nova demência
e sustive-me entre a explosão do riso e a mesa
tão abismal como o caos que adoro nos altares a cada dia

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Digressão de um ilusionista


o poema saído das mãos do criador

e quem sabe o que dirá o amanhã
porque o dia é claro e a noite
sabe-se lá o que nos traz nas nossas costas
e se eu pudesse eu aniquilaria todos os poemas
porque só o meu é real
apenas porque eu o digo
e só não digo o que não sei porque no fundo não existo
e ainda nem aprendi a ser
quem sabe nem eu conheço o que sai das minhas mãos
a minha obra é órfã antes mesmo de nascer
fatalmente
o poema ficará sem autor nem mestre nem ouvinte no final dos tempos
para quê se nunca mais haverá poentes
no lugar onde eu pousarei a cabeça
apenas a folha e o texto e o café e as pessoas e as ruas e
todas as cidades onde nunca vivi mas onde sempre deixei um rasto
como em qualquer cama sem redenção
para quê ter amigos ou família
se as sombras caminham sempre sós
e todas apanham o mesmo barco para casa no final do dia
cansadas do trabalho
não me negues nem apontes as pessoas ou as pedras da calçada
nada me converte nada me ensina nada me comove
a não ser quando me tocas
e aí as minhas teorias acabam sempre por ser desmentidas
afinal é essa a tua missão
que faria eu sem ti
sem a tua rapidez dos pianos
há tantas cordas com que amarramos a nossa pele
não me prendas às palavras pré-construídas
não quero
nem posso
dar-me ao luxo de continuar a falar-te
não posso
não tenho tempo
e o relógio que me ofereceste no ano passado continua a parar
por breves instantes
na mesma hora estúpida do dia
seis e vinte e cinco
não sei
não sei deve haver alguma razão para estar aqui
possivelmente receio
morrer do mesmo modo que as palavras me saem sempre
de modo repetitivo
dia sim dia não
o mundo pára nos meus dedos
nomeadamente entre o primeiro advérbio e os planos para o fim de ano
havia de ser bonito conhecer-te
talvez um dia quando eu for aquele célebre poeta
que toda a gente conhece do desfecho de um livro
tal como um amigo que se encontra num bar
à média luz todas as faces são ilusórias
o teu corpo e o meu destino
tudo o que toco com o poema desfaz-se
pois assim me descubro homem e a incerteza e o caminho e a paragem
tento parar há um autocarro que parte daqui a nada
e nem tenho um poema completo para seguir viagem
porquê
pergunto eu porquê
creio que terei a resposta quando deixar o assunto para outro dia
e inevitavelmente vir a encontrar um anúncio nas páginas centrais do jornal
que não anuncia calor mas apenas a vontade de estar sempre imerso no vazio
porquê
o verso sai-me sempre igual ao dia de ontem
e ao dia antes desse
talvez se não tivesse travões
talvez se andasse sempre em sobressalto
como hoje
talvez se deixasse de falar entendesse alguma coisa
sobre uma única pessoa
bastava calar-me
não sei para que é que me olhas dessa forma
afinal para que é que passamos a vida a dizer que tudo muda
quando me estás a dizer exactamente o mesmo apenas de outra forma
daí a minha falta de sono e a deriva dos continentes
o que é o mesmo que dizer os meus sonhos ou
aquelas pérolas perdidas de que as crianças se esquecem
quando aprendem a contar ou a ler ou a discutir política
talvez o poema se revele de outro modo quando eu crescer
ou quando envelhecer definitivamente até ao próximo parto
o facto é o que o poema saiu das mãos do criador e até hoje
nunca mais retornou
tudo isto me irrita e confunde
mas que fazer se a vontade das palavras não é a mesma que a nossa e
por mais que queira parar há algo que me prende ao poema
por mais que peça o divórcio nunca deixarei
nunca te deixarei
é possível que volvidos uns séculos eu volte aqui e diga
que me encontrei
mas até lá o poema continua em viagem
está atrasado
e ainda não voltou a casa

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

A voz


como poeta posso ter muitas vozes
posso descer à rua
ver uma flor
e imediatamente alimentar-me de luz
as folhas do poema provavelmente ficariam verdes
envelheceriam com a minha perda de inocência
e eu talvez pudesse guardar um verso para o inverno seguinte

posso ainda
nos arrufos entre certos amantes
não saber o que dizer
e ser a mão que bate do lado errado do coração
ou sempre que alguém cai de joelhos
ter os vitrais das capelas a cortarem a minha garganta
conhecer a luta do coração que duvida entre as mãos postas

como um deus
vivo da tua voz
do vazio e da tua fé
eu que crio alguém para poder ser quem sou
para além do meu pensamento

mas que digo eu
se o ruído é tudo o que há?

mesmo que um bilhete do metro me traga a casa
mesmo que apague as luzes
e ressurja no poema como em cada espelho
a voz que ouço na rua
não é a minha
mas a do poeta de um outro dia qualquer

hoje rasguei o poema
a carta branca a folha-atestado
as palavras a mais
os pedaços da folha que nunca foi poema
passaram pelo mar e trouxeram consigo o poente
não gosto do modo como as palavras caminham na areia
lembram-me um deus que preferia não ter ao meu lado
não quero fazer do poema uma cópia de outras tardes
porém há uma estranha ausência
um toque frio quando me falta o ar