quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

De profundis


Acho que o sentido que a nossa existência poderá ter (ou não) passa por esta capacidade que temos de a questionar, de a reinventar, de lhe querermos dar um nome. Diante do silêncio da morte, ou mesmo da efemeridade geral de todas as coisas, ainda sentimos a tentação de falar, de sentir, de criar algo novo, algo que nos ultrapassa. Entre nós e o silêncio, o dever de falar. Vivemos porque temos que viver. Somos rebeldes desde o começo e em cada instante da nossa vida.


Acho que a vida não teria o mesmo interesse nem teríamos a mesma dignidade se deixássemos de nos revoltar, se nos conformássemos com tudo o que nos magoa, afecta, transtorna.


Diz-se que a linguagem é uma forma de nos tornarmos donos das coisas que conhecemos. Nada existe para nós, humanos, se não formos capazes de o nomear. O simples facto de conseguirmos ter consciência do esquecimento último de todas as coisas e de lhe conseguirmos dar um nome nas nossas preocupações e reflexões já indica que somos, de alguma forma, donos do mistério. Donos daquilo que outrora nos desgastava.


Acredito que Sísifo não encarava o seu castigo como algo penoso. A partir de uma certa altura, a consciência de como as coisas eram deverá tê-lo feito aceitar a sua condição e retirar daí o seu próprio sentido para o seu viver. Afinal, a sabedoria não consistirá simplesmente em sabermos como as coisas realmente são, sem máscaras, ilusões ou devaneios?


Diante desta questão que nos desarma quando concluímos que a nossa vida, ou antes, a vida em si mesma, é absurda, não te respondo que a vida ganhará sentido numa futura eternidade, nem com alguma menção a Algo ou Alguém superior. Respondo-te com um elemento que nos é bem interior.


Não existe um sentido para a vida que nos seja dado à partida, como um direito adquirido. Viver e existir não são sinónimos absolutos. Não podemos limitar-nos a agir como os outros animais, apesar da nossa indiscutível e necessária natureza carnal, pois, como referi acima, o facto de nos questionarmos, de sermos rebeldes, de pensarmos, imediatamente distingue-nos dos demais seres, e o consequente livre-arbítrio que nos permite escrever a nossa própria história pessoal não nos deixa afirmar que somos meros escravos dos nossos instintos.


Certo é que não somos intrinsecamente bons nem maus, quanto mais não seja porque todas as morais têm um prazo e um contexto. Enquanto conjuntos de normas, são produtos culturais e produtores de cultura. São tão efémeras quanto nós mesmos. Mas as nossas escolhas, livres e racionais, verdadeiramente esclarecidas (por vezes necessitando de alguns saltos quânticos que porventura confundam a nossa lógica habitual), deverão unicamente escutar a nossa voz interior, respeitar a nossa dignidade enquanto pessoas (que teremos que ir construindo a cada dia). Daí nasce toda a verdadeira ética. "Torna-te naquilo que és", diria Píndaro.


A vida, por ser um mistério, tem valor por si mesma. Apesar do absurdo, é o seu próprio abismo que a torna valiosa.


Quanto a cada um de nós, se não somos nem "bons" nem "maus" por natureza, temos apenas a certeza de que somos imperfeitos e limitados. Essa mesma imperfeição deverá levar-nos a procurar completar o que nos falta junto de outras pessoas, de outros seres humanos desafiados pelo abismo. A rebeldia não nos impedirá de morrer, mas levar-nos-á a algo melhor do que todos os paraísos de inércia em que preferiríamos refugiar-nos.


Nós somos aquilo que fazemos das nossas relações.


Ouvir-nos a nós mesmos, tornarmo-nos naquilo que somos, tudo isso passa pelo Amor. Não um amor abstracto, romanceado, irrealista, um amor reduzido ao sentimento, à paixão, ao entusiasmo passageiro. O Amor age exactamente contra a efemeridade. Contra a mediocridade também. Diante do absurdo, não nos fechamos em nós mesmos, mas somos seres-para-os-outros. Quanto mais não seja para sermos a voz que desperta a multidão do seu sono.


Nunca te esqueças. Diante do silêncio, a maior das tentações é a de falar. Diante do esquecimento, a maior das rebeldias é voltar a escrever tudo desde o começo. Tal e qual como nos foi dito dentro de nós.

5 comentários:

Unknown disse...

Olá meu lindo amigo fiquei sem palavras ,achei tudo muito lindo mesmo tu es muito especial, que deus te ilumine sempre pela pessoa maravilhosa que tu es e deixo aqui uma frase que eu uso muito comigo...
"Acredito que cada novo dia é melhor do que o que passou; pois afinal é um novo dia;
Acredito que cada amizade nova é uma forma de gostar e aprender um pouco mais de alguém; pq melhor que um ombro amigo?
Acredito de que viver é pura adrenalina; pois para viver é necessário muitos tombos e coragem de enfrentá-los e levantar-se;
Acredito que em vez de vingar-se é melhor perdoar; pois "amar" é um dom bem maior do que a vingança;
Acredito que muitas vezes chorar é bom, fortalece os pulmões;
Acredito no amor, na amizade, no perfume das flores pq posso sentir ambos; posso sentir o amor dentro de mim, o carinho pelos amigos e sentir (hummmmmm) o perfume das flores;
Acredito que sonhar é bom mas tornar esse sonho realidade é mais ainda, com fé em tudo que faz, em tudo que podemos fazer e ajudar alguém fazer...


beijos Si!!!

Anónimo disse...

Caro amigo, não podia partilhar mais contigo as tuas palavras, nem acrescentar muito mais.
Obrigado pela partilha, e pelo modo como escreveste, com direcção, com clareza, com sinceridade!
Desejo que a tua vida corra com mais verdade e luminosidade!
A felicidade está mesmo dentro de nós, não depende de nada, só depende de nós próprios nos permitirmos a ela. Será essa a nossa natureza, uma constante luta para a libertação, uma (re)união com a Natureza (Deus?)...
Um abraço!

What is in a name? disse...

Simone e Gato Xara, muito obrigado pelas vossas amáveis palavras. No silêncio, a maior das tentações é mesmo o dever de falar. Espero ter conseguido tocar-vos na alma. Continuem a passar por cá.

Do autor do blog.

Anónimo disse...

De Profundis... conheces o livro com o mesmo nome de oscar Wilde?

What is in a name? disse...

Amigo Daniel, de facto não conhecia esse texto de Oscar Wilde, mas obrigado pela referência... Agora que tenho algumas noções sobre aquilo de que se trata, terei todo o interesse em ler...