quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Dança


Fazes-te silêncio.


No sótão onde passámos a tarde a emprestar algum peso aos nossos corpos tão desejosos de novos voos, tão sedentos de céu nas entrelinhas dos dedos, a luz média recorda-nos a porcelana dos dias e a delicadeza das antigas caixas de música que por vezes abríamos só por uns segundos por querermos perfumar os intervalos entre os nossos beijos e a janela. Como eram eternas aquelas gotas de precioso âmbar que fazíamos ressoar como breves risos de crianças por entre as colunas...


As fotografias eram o estúdio onde redefiníamos as prioridades do coração para o instante seguinte, eram o tecido de baile, a prática e o exercício de cada passo do nosso encantamento. Éramos vários no milagre multiplicador do movimento, linha a linha, e nem as margens envelhecidas da imaginação nos impediam de nos tocarmos como pianos num segredo semi-adormecido. Sim, meu amor, nunca perdi as tuas palavras marítimas em formação cristalina junto aos meus ouvidos. Depois de ti, não haveria nenhuma outra brisa nem nenhum outro olhar no verso das nossas frases.


Não conheceremos outra vertigem como a das flores que guardámos para sonos posteriores.


Faltou-nos rasgar o dia a partir de onde nos sentamos, faltou-nos encontrar um espaço de inocência para os nossos olhares órfãos, e volto a referir que o sótão era quadrado como em todos os telhados triangulares, pois até o pensamento, tendo duas águas diante do mundo, vive num espaço com três eixos. Na geometria das nossas tardes, pergunto-me se algum dia nos encontrámos numa das películas mudas com que as cinzas nos presenteavam. Mas continuo a sentir aquele mesmo arrepio que me dava a tua presença e as tuas palavras gesticuladas de novos nascimentos. Inocência. Chuva por entre as mãos. Todos os dias eram domingo no nosso lugar sem tempo.


Diziam-nos que se tivéssemos asas seríamos capazes de voar. Seríamos donos da salvação, grávidos de um desejo impronunciável mas puro, tão puro que só a chuva era capaz de concretizar. Porém, as asas não apareceram a tempo para as fotografias, e assim continuámos a servir-nos das harpas para dizer o que ainda não era poema em nós, aquilo que era já fogo mas ainda não sangue. Tudo o que nós éramos para além das sombras. Antes do embate.

2 comentários:

farfalla disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
farfalla disse...

existem palavras que tocam... sabemos que nos tocam porque sentimos o seu cheiro, o seu gosto...sem distinguir onde nos atingem...
este texto enche-me as medidas... mima-me...

Obrigado por isso...

_baci_