terça-feira, 11 de março de 2008

Renúncia



Do seu exílio, o poeta escrevia, áspera e lentamente, nas paredes cinzentas de cartão defumado que o separavam da cidade:

Este é o primeiro poema da minha vida.

Passando os dedos reciclados pelo vício da casa, dizia a si mesmo que aquelas eram apenas as primeiras janelas antes do quebrar da luz. Diante das muitas páginas rígidas e empilhadas na mesa precoce, abortou o plano indesejado e deixou a arte para o fim. O poeta, de voz em punho e tinta à flor da pele seca, declarou veementemente:

Este é o primeiro poema e a minha vida.


Do seu famoso exílio fabulosamente invejado nos jornais, o poeta batia à máquina para não agredir os transeuntes, que por acaso, só mesmo por embirrância, se tinham colocado a jeito, atravessados pela estrada. O poeta tomou então mais um pouco de café, antes de marcar o duelo seguinte. Como as palavras eram escassas, comprou algumas por atacado e digeriu-as aos poucos, uma letra por dia. O poeta esfomeado mastigava pacientemente as paredes da casa a olhar para o seu prato vazio. A sua dieta impedia-o de consumir interjeições ou sequer preposições. Ao poeta só lhe restavam os artigos e as letras fora do abrigo da lei. E cópulas, muitas cópulas em forma de vogal aberta diante do espanto da matiné. O poeta vestiu-se de vapor, colocou-se na varanda de onde via gigantes ao pôr-do-sol e disse, ousadamente, aos muitos pássaros na praça:

Esta é a primeira vida do meu poema.

Terminou então a sua lenta ruminância que o deixara nu, desceu pelo elevador para a rua inclinada, pegou numa cadeira à espera dos sinos do camião do lixo e de modo muito distraído sentou-se no meio da calçada. Ao invés de escrever, olhou para os pedaços de vento soprados pelos papéis do chão, e ainda pensou para si mesmo que gostava de ser tão bom com as palavras como as memórias-detritos por reciclar. Disse, pois, nu, incandescente e irritado, com uma folha de papel a chover-lhe das mãos:

Esta é a primeira morte, e o poema da minha vida.


10 comentários:

co-seno disse...

Adjectivação bem estruturada e utilizada no momento certo.
Parabéns.

Irene Ermida disse...

Muito significativo este blog!

Anónimo disse...

in a name there is mushroom soup

olá

deixo o link para o meu novo blog de poesia, estas linkado tb

Anónimo disse...

Adoro a tua forma de escrever, és sem dúvida um poeta e escritor, tens o poder da palavra escrita, espero que consigas voar bem alto, no teu mundo de letras...

Angel ? / Devil ?

Cometa 2000 disse...

excelente texto!

jorgeferrorosa disse...

Muito belo o teu trabalho. Andas muito ausente.
Abraço

p disse...

Ainda bem que cedeste à tentação... ;)

Anónimo disse...

Que grande interregno! Para quando o regresso? :) Aguardemos. Vale a pena. :)

Adinatha Kafka disse...

Fantástico... Não consegui evitar o arrepio, mesmo!
Continua o bom trabalho!

Adinatha Pássaro de Corda

Anónimo disse...

O que se passsará para ha tanto tempo não apareceres e nos priveligiar com um dos teus bons textos?! Do coração o desejo de que estejas bem, enconrando o teu caminho... construindo o teu bem-estar... És uma pessoa linda e muito o mereces.
Um beijo amigo.