quinta-feira, 26 de julho de 2007

Anatomia


o poema
autópsia do pensamento
ainda este tinha vida

poderíamos contestar que as ideias se querem intactas
porém
como nas trocas que os homens fazem
por comércio arte ou apenas despeito
as ideias só nos são úteis quando nos desfazemos delas
este poema veio portanto a ser dissecado
de outro modo cairia depressa nas praças

o verso
célula que cresce demasiado se não a devorarmos
sangue que nos esgota quando não é derramado primeiro

não é de desprezar a guerra que o poema trava
nem a cirurgia em que o mesmo poema entra em choque
quando a voz se desloca um pouco mais para além da luz
o poema desaparece
coma profundo
do corpo velado pela boca dos sem amor

caso as palavras se queixem
que lhes dói
que ardem
que são seduzidas
assediadas
e aí o problema não é delas nem do anestesista
mas simplesmente do facto de haver desejo
dado inalterável desde a primeira criação
talvez
talvez se descubra com tamanha rebelião
que as palavras não nos servem
embora sejam excelentes amantes
e o pensamento continue a procurá-las nas horas vagas
sem compromissos
encoberto por dois olhares
um espelho
e muito absinto

deitamo-nos com o poema
não nos admiremos se este contiver segredos a mais
que não podíamos adivinhar após um breve contacto
é conhecida a conivência das cidades
e das suas chamas
que mascaram os rostos
até ao amanhecer
até ao derrame das águas

numa dessas noites encontrei um poema dado como morto
na mesma vala onde havia mendigado
durante todas as horas do relógio
e por último vendido o seu corpo
se desmontássemos cada peça das nuvens que o compunham
pouco de bom se encontraria
poucas palavras justas
e ainda menos vestígios de sanidade

todavia
é por essa loucura
profunda intensa vasta como um abraço
que nenhum poema morre
nem tem prazer
apenas
finge

2 comentários:

Menina Marota disse...

"...todavia
é por essa loucura
profunda intensa vasta como um abraço
que nenhum poema morre
nem tem prazer
apenas
finge"

Intenso!

Gostei destes momentos que aqui passei.

Poesia profunda, de sentimentos e sensibilidades, para além da poesia.

Um abraço

jorgeferrorosa disse...

Poema tão belo, de ritmo tão cadenciado. Muito bem. Parabéns. continua. Gosto de te ler.

Abraço da Alma