quinta-feira, 18 de novembro de 2010

como um címbalo que retine



diante da tua ausência
todos os meus passos são simples pedaços de sombra a ganhar terreno num país de névoa
todos os meus passos
ritmos sonâmbulos de uma cabeça feita pêndulo de bronze

dizem que ele retine sem que ninguém o entenda
e é análogo aos homens que
mesmo na idade dos anjos
habitam uma cidadela de ferro
polidos oxidados surdos
presos ao chão

assim também eu pareço dizer muitas palavras sem que as entendas
talvez estejamos de lados opostos do espelho
talvez me falte entregar o meu corpo ao fogo e deixar que as cinzas te falem
talvez
a minha prisão do tamanho dos teus braços fortes

mas
diante da tua ausência
os meus passos são apenas fantasmas num país em ruínas

terça-feira, 14 de setembro de 2010

dizem que a dúvida é uma espécie de fome
a mente ecoa as suas carências com a mesma ressonância que o estômago
portanto se eu duvido de ti
se te conto os dedos enquanto te aproximas
deduzo que parte da minha fome só se resolve com o teu toque
a sombra quente que suspende a minha descrença

dizem que não há que ter medo da dúvida
que a verdade é sempre a mesma
do alto de um rochedo ou entre as pedras de uma maré baixa
ou ainda no salto desesperado de um para o outro
aprender é suscitar aparições em lugares vários
sem escapar a cada segundo da descida
é abraçar essa crescente finitude
o cerco que se fecha
a última vaga

é a mesma gravidade
com que desço entre mundos e poemas
que me faz aprender todos os satélites dos teus sonhos
e mesmo arremessado contra o teu último chão
perscrutá-lo disciplinadamente em busca de novas ondas e luares

nessa outra margem
outro universo
os ecos voltam a ensinar-me os teus dedos
e desta feita ouço que os lavas em água corrente
pergunto
o que é a verdade?
e entregas-me pedras em vez de pão
silêncio sem tentações
um sol vertical sem a tua sombra

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Sophia

Tomei o nome da Sabedoria porque amar-te fez-me conhecer a loucura, aquela que supera toda a ciência e assimila o que o pensamento mais elegante não consegue alcançar.

Usurpei o seu nome porque deixei de reconhecer qualquer lógica no mundo desde que tu o pisaste pela primeira vez. Já te conhecia antes que tudo existisse, antes até do próprio tempo, e o meu deleite sempre foi estar na tua companhia.

E no fundo, de que vale o meu nome? Criei-te e ofereci-te o meu reino, aquele onde com um braço ergues belos jardins e com o outro fazes girar uma espada de fogo que te separa do mundo. Queria que me reconhecesses. Queria recuperar-te, demiurgo do meu coração por completar. Mas desse lado da nuvem de desconhecimento que nos separa nada te faz saber quem sou e o que sinto.

Para ti terei todos os nomes do mundo. Nenhum deles me pertence de facto. E assim permanecerei, atrás de um abismo intransponível, onde nem eu me consigo encontrar nem o meu amor tem nome.


quarta-feira, 25 de novembro de 2009

a queda

já não há rimas novas a fazer
inevitavelmente esgotaram-se os sons e as sintonias
e possuímos agora toda a ciência
e dominamos todas as línguas dos homens
doravante o mundo será regido pelo caos
luz contra sombra água contra fogo
seremos diletantes eternos em busca de um novo caos
e a nossa hora última será um verso branco
fora de tempo fora de ritmo
breve

pois já não podemos dizer chuva
sem sentir o fragor das vinhas
nem navegar sem passar pelos arcos do templo
o que está bem terá sempre um colo
e a dança acompanhará a nossa mocidade
tudo é previsível
mesmo o que não se vê
teremos sempre vento para nos contar os segundos
montado às costas de uma frase deixada a meio

discurso soluço sufoco nudez revelação

antes oferecíamos o corpo nos altares
segundo leis milenares ou com um punhal de improviso
hoje parece-me que nos vestimos de vermelho por outros motivos
o poema já não sofre nas mãos do poeta
contudo o poeta não sabe já quem é
faz-se de rei nas praças da cidade
mas esta já havia caído séculos antes
muito antes das cavalarias das armadas
antes de haver nomes para as cores do seu manto

sábado, 26 de setembro de 2009

Assis

retomar a queda interrompida por sobre o mundo
inverter o tabuleiro as grades as peças dos sentidos
subir ao derradeiro chão de todas as vertigens
e no último passo antes da verdadeira encarnação
abdicar de tudo menos das raízes dos cabelos
uma seara à espera de asas

e aí sim
fazer silêncio
contemplar as cidades nascidas em plena atmosfera
os jardins suspensos de uma Babilónia por reconciliar
tocar na sua admirável falta de alicerces
pressentir o poder das nuvens que criam palácios e ruínas
que sendo de dimensões várias chegam todos à mesma altura
arremessados contra o seu tecto máximo
que é também o fim e o começo e a verdade
de cada semente em cada pedaço de terra
de cada abraço plantado

neste compasso de espera e de presença
o poeta estende-se sobre o abismo entre um universo e outro
com as mãos abertas cravadas na ânsia do solo
em estado de puro desejo de irrigação
de sangue e de orvalho ocultos sedentos de comunhão
um poeta de pés livres para dançar com o vento
passo a passo para fora do tempo

é o céu
diz a profecia gerada e nascida da ponte
é esta loucura que abre a boca do poeta para embeber a terra
e da árvore de mãos enraizadas e pés alados
surge todo o sonho a noite o dia enfim a criação
e depois da chuva virá sempre o deserto
o segredo que é incêndio e hibernação
o segredo que se torna aurora
sétimo dia
antecâmara da transfiguração